A dissolução da paisagem: imagem, espaço e tempo na vídeoinstalação

Dissolver a paisagem não é apenas uma figura poética de linguagem. De certo modo, é acompanhar os modos pelos quais a paisagem atravessa os séculos de nossa cultura até a sua diluição na multiplicidade de aspectos que conformam a sensibilidade contemporânea. O ponto de partida, ou referência histórica, é a paisagem pintada, em seus diversos estágios de representação visual, os quais por sua vez já trazem todos os gérmens da experiência que a modernidade viria a deflagrar. O ambiente moderno, cujos modos de conhecer e sentir são ativados pelas articulações entre a fotografia, o cinema e os novos meios de transporte e comunicação que transformaram por completo as relações sociais, vai desafiar a paisagem, como toda a arte aliás, a reinventar-se e lançar-se para além da experiência visual. Trata-se portanto de pensar as passagens da paisagem da visualidade para a sensação e da sensação para a experiência ambiental e atmosférica de seus elementos. Ou seja, a paisagem chega ao limite de descolar-se de seu eixo de origem, onde estão os próprios fenômenos naturais, para constituir-se enquanto conceito, conceito elástico que institui a idéia ampla de lugar, desde que lugar para uma experiência dos sentidos.

Este lugar já é um primeiro esboço conceitual, abrangente, para o espaço que antecede qualquer gesto. E é neste lugar que se podem situar aqueles elementos que atravessam constantemente a nossa experiência cultural da paisagem desde a representação pictórica até a sua sensorialização no ambiente contemporâneo das instalações. São esses elementos que constituem a essência da pesquisa, a qual se utiliza do vídeo e da projeção como suportes. A poética portanto se faz na soma, ou diálogo, entre os elementos subjetivos e formais do cânone da paisagem e a tecnologia de captação e reprodução que os reconstituem ou materializam no espaço. O que viabiliza tal diálogo são os conceitos operacionais, que tanto buscam dar conta da paisagem de sua forma visual à sensação quanto a crítica das tecnologias – e das linguagens por elas engendradas – em seus efeitos sobre a experiência estética. O resultado, espera-se, deve aproximar-se de uma diluição de todos esses elementos numa experiência com o espaço, ou seja, a paisagem diluída no próprio lugar, tornando-se experiência múltipla pelos sentidos e não se restringindo apenas aos fenômenos naturais. Antes, porém, os vincula ao próprio sujeito como aquele que percebe o mundo externo, processando-o conforme as suas próprias estruturas, determinando a experiência.

No interior da paisagem visual, a paisagem pintada como representação, é possível identificar uma constante. Qualquer que seja o período, escola ou estilo, a linha do horizonte se faz presente como núcleo estrutural constitutivo, a partir do qual os efeitos e movimentos das paisagens se tornam ativos. É porque na linha do horizonte está a luz, a fonte de energia da pintura e portanto da paisagem. É a partir do horizonte, onde o sol nasce, rebate ou se põe que as cores das paisagens se espalham, se entrelaçam e enfim pintam, dão volume e contornos à representação em tela. A atenção à linha do horizonte como fonte de luz e cor, e portanto origem dos sentimentos emanados através da figura, permite que em última análise sejam deixados de lado de fato todos os demais elementos visuais, traços, curvas, contornos, perspectivas e esboços que produzem os objetos reconhecíveis da natureza. Tal movimento tanto permite trabalhar com a paisagem numa conceituação mínima, abstrata, como igualmente dá acesso à essência da experiência da paisagem, os elementos que a ligam aos sujeitos dos sentidos.

É neste ponto que a linguagem reclama o seu papel, mas qual linguagem? Essa dúvida de pronto sinaliza certos questionamentos cruciais que a pesquisa acabará por levantar em seu caminho. A primeira linguagem em jogo é a do cinema, pai de suas derivações mais amplamente compreendidas como audiovisual. A imagem numa vídeo-instalação, seja qual for o seu emprego, será sempre tributária do cinema. No caso particular da pesquisa, trata-se de pensar na transposição da narrativa do interior mesmo da montagem fílmica para a sua articulação nos próprios vãos do espaço instalado. É nessas dobras do espaço, dobras que sempre encontram o olho do sujeito, que a narrativa do cinema cruza e necessariamente trava diálogo com os elementos próprios da imagem pictórica. O que evita um jogo desigual de forças é o fato de ambas as linguagens – a narrativa do cinema e a sensação visual proveniente da pintura – estarem expostas em territórios estrangeiros a si mesmas, ou seja, o espaço da instalação, onde terão de dialogar. Tal diálogo, espera-se, deve ser injuntivo, compositivo, no sentido de que ambas as linguagens se desconheçam de si mesmas para formar algo particular neste novo arranjo espacial.

Mas se o mecanismo mínimo responsável pela articulação das múltiplas temporalidades instaladas vem da narrativa audiovisual, é da pintura que vêm seus elementos. A vibração da cor é a essência da pintura, mesmo em sua fase clássica. Não há pintura sem cor e, o mais importante, é a ativação entre as cores que projetam as formas em nossa percepção por meio da vibração. Isso quer dizer que, seja qual for o tema, figurativa ou abstrata, narrativa ou desconstrutiva, a imagem pictórica sempre alcança o receptor por meio da vibração da cor, pois ela é a sua célula mínima. Tal raciocínio se amplia em complexidade se transposto para as tecnologias de captação e reprodução da imagem em movimento, em particular as digitais. Pois estamos então falando de fato em pixel, linha, interpolação de elementos codificados que, tal como o próprio DNA humano, guardam e transportam as informação da cor. As lentes das câmeras e as telas de reprodução ou projeção se tornam por este prisma e sem qualquer problema perfeitas análogas da tela da pintura, feita de tecido e fundo branco. É a cor como luz e, antes, como código numérico, que ali se projeta para então cumprir o mesmo papel que a imagem vem cumprindo há séculos em nossa cultura: ser captada pelo olho como vibração, para só então ser organizada formalmente pelo cérebro e interpretada.

O que se deseja nesta instalação portanto é uma aproximação o mais íntima possível da experiência presente da vibração das formas enquanto ainda não se tornaram formas. Somente ao sujeito cabe ordenar, interpretar e realizar então as suas versões da obra. Mas não é papel da instalação conduzir tal interpretação. É por isso que todos os elementos postos em jogo devem necessariamente respeitar uma certa essencialidade. Quanto mínimos sejam, mais essenciais e portanto mais espaço é dado ao sujeito para uma interpretação paradoxal: com o mínimo dos mínimos, espera-se, reduzem-se as próprias possibilidades de interpretação. É como aproximar o impulso racional pela ordenação e interpretação do material percebido a uma certa rítmica do tempo. O intervalo de transição dos estados da imagem no interior da instalação produz uma experiência atmosférica com a obra. A imagem se torna ela própria algo não material, luz de fato, produzindo uma atmosfera dessa variação, a qual só pode ser percebida pela convocação viva dos sentidos, ou seja, pela presença máxima do corpo. Isso quer dizer, em contrapartida, a redução, ao máximo possível, da própria racionalização, que em certo sentido bloqueia partes da experiência com a obra na medida em que tende a lhe inserir discursos que não lhe pertencem.

Essa pretensão, para finalizar, traz ainda um desafio, ou parâmetro de trabalho necessário, especialmente no que tange ao uso da tecnologia. Falar em sensação, experiência, presença e atmosfera, ao menos no caso particular dessa pesquisa, é também questionar as noções de fascínio e espetáculo que sempre rondam a produção de imagens, especialmente as digitais. Entende-se aqui o fascínio como um estado de não presença, como torpor e descontinuidade com o próprio corpo, a sua temporalidade, por meio de uma excessiva vinculação afetiva e emocional com o objeto. O objeto, neste caso, se torna o todo, dominante, e o sujeito desaparece no sentido de escolha. No espetáculo, que é o lugar do fascínio, são as imagens que existem, não os sujeitos, pois que se encontram todos embriagados por seus afetos. O emprego da tecnologia de produção e reprodução de imagens digitais, bem como a modalidade e as formas das imagens que serão utilizadas, trazem como desafio questionar a imersão no espaço instalativo, no sentido de realizar uma imersão em que o próprio sujeito possa emergir. Ou seja, ao mergulhar na experiência, é o sujeito que aparece, como tanto quis Benjamin para o cinema.

 

* Extrato do artigo apresentado no Seminário de Pesquisa do Mestrado em Artes Visuais UFPel – Convergências na arte contemporânea, em abril de 2015, com publicação pela Revista Paralelo 31 em março de 2016.