Almas mortas

Sem Amor (2017), longa mais recente do diretor russo Andrey Zvyagintsev, traz uma abordagem marcadamente realista como meio de evocar o fantástico pelas beiradas, característica não só do cinema, como da melhor literatura russa. O filme começa e termina de maneira semelhante, numa estrutura circular. Desde o título se insinua um sentimento difuso que logo se espalha por cada recanto, cada detalhe, cada gesto de seus personagens esvaziados. É justamente o que falta, ou se ausenta, o objeto incômodo que impulsiona a narrativa.

A sinopse, apenas, não dá conta do que está por vir: um casal, que passa por uma separação, ambos estabelecendo-se em novos relacionamentos, precisa dar um passo atrás face ao desaparecimento do filho. A deterioração da relação, mergulhada num estado de insensibilidade recíproca em que predominam ressentimentos e reações agressivas, não nos deixa esperar que o incidente reaproxime ou suavize os ânimos. É esse território delicado, minado de feridas profundas, que interessa a Zvyagintsev.

O filme abre com imagens de uma paisagem de inverno, árvores sem folhas, os galhos secos, um lago rodeado pela neve. A cena seguinte traz Alyosha (Matvey Novikov), o filho do casal, no caminho da escola para casa através da floresta, em seus poucos instantes de espontaneidade infantil. Logo veremos que é sobre ele que pesa a separação, seu sumiço como emblema do afeto que não será encontrado em parte alguma. Não por acaso o desaparecimento do menino se dá logo em seguida, após a última e violenta discussão dos pais.

Zvyagintsev estreou no cinema com o impressionante O Retorno (2003), filme que lhe rendeu o Leão de Ouro em Veneza e projetou-lhe como promessa internacional. Inevitavelmente comparado com Tarkovski pela atmosfera contemplativa e misteriosa de seus trabalhos, marcados pelo alto padrão estético, a boa recepção não se repetiu em The Banishment (2007), que contém excessos e falhas de roteiro. Mas a partir de Elena (2011) o diretor marca posição, renovando seu vigoroso estilo narrativo tendo então a Rússia contemporânea como pano de fundo. O resultado é o aclamado Leviatã (2014), indicado à Palma de Ouro em Cannes, vencedor do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e indicado russo ao Oscar.

Sem Amor, que estreou no Brasil em fevereiro, levou o Prêmio da Crítica em Cannes e foi novamente o candidato da Rússia para o Oscar de Filme Estrangeiro. A fórmula de Zvyagintsev segue essencialmente a mesma desde Elena: a todo o tempo, um confronto do íntimo com a complexidade do entorno, em que os elementos do contexto aparecem cuidadosamente diluídos no coração de cada situação. Assim é com Zhenya (Maryana Spivak), cuja frieza para com o filho tem a medida de sua vaidade e ambição. O autocentramento narcisista nos próprios desejos e sofrimentos fazem o menino oscilar entre o estorvo e a invisibilidade.

Em torno deles, o que vemos é uma Rússia ascendente e individualista, porém sob o paradoxo de manter-se presa às suas origens arcaicas, tendo como epicentro a burocracia estatal. A polícia, só um exemplo, não dispõe de contingente para dar conta de mais um garoto perdido. A alternativa será o auxílio de uma organização não-governamental formada por voluntários, em busca que se dá por ruas cobertas de neve, prédios desocupados, sugestivas ruínas e parques vazios, imagens que descortinam a corrupção moral e a deterioração afetiva de uma sociedade.

Mesmo os voluntários não passam de tênues manchas de cor em meio à branquidão das ruas, numa das muitas enunciações fortemente visuais típicas de Zvyagintsev. Quanto aos pais do garoto, suas asperezas não escondem caracteres frágeis demais para darem conta da tarefa, que antes diz respeito às suas limitações para um relacionamento mais maduro e consequente. Ao menino talvez reste simbolizar, pela falta, justamente aquilo que se perdeu e que não sabemos mais achar, e que no entanto paira como ameaça de tempestade sobre nossas cabeças: o vínculo social ora substituído pela acumulação material e pela vazia fogueira de vaidades das redes sociais, o que fica explícito no comportamento e nas escolhas de Zhenya.

Formado ator pela Academia de Artes Teatrais em Moscou, Zvyagintsev tem particular preocupação com o elenco, dirigido com notável sensibilidade. Articulando a natural energia verbal russa, transposta em diálogos precisos, velozes e bem escritos, com espaços de silêncio e contemplação, ele permite que a imagem e o som distendam a narrativa aos limites do poético, com forte pendor trágico. A direção de arte e a fotografia seguem virtuosísticas como em seus filmes anteriores, com uma conjugação de belos enquadramentos e movimentos lentos, contrastes e cores dessaturadas, olhares distantes e ações mínimas que ocupam expressivamente as cenas quando tudo e todos se calam.

Zvyagintsev é um cineasta que não aborda seu objeto diretamente. Isso quer dizer que ele o vai cercando por meio de não-ditos, sem reduzi-lo a um mero problema das circunstâncias. À tendência para explicações fáceis, característica dos dias tagarelas em que vivemos, ele opõe a escala desconcertante das paisagens, mesmo as urbanas, através das quais o tempo redime os sofrimentos do homem, sentido do sublime. É essa alternância entre passagens de teor metafísico e o realismo narrativo que não deixa o filme desvirtuar por formas simplificadoras. O tecido da obra se faz então sinuoso, permeado pela incerteza.

Quanto à intensidade trágica do roteiro, suas raízes estão fundas na cultura russa. Os personagens se veem como que impotentes, arrastados rumo à catástrofe, quase espectros inapelavelmente levados por uma força que os transcende. Tal recurso dramático tem ressonâncias naquilo que diversos críticos literários definem como “a apreensão do caráter fantástico da realidade”, referindo-se a escritores como Gogol, Tolstoi e Tchekhov, referências de Zvyagintsev. Eles são precursores do mesmo pessimismo ou niilismo existencialista que caracteriza o filme. Seus personagens rudes carregam traços dos anti-heróis de Crime e Castigo e Memórias do Subsolo, de Dostoievski, como de seus melhores sucessores europeus, Camus e Beckett principalmente.

Por outro lado, a recusa a priori à redenção por um julgador onipotente pode ser pensada como um elemento realista, na medida em que dialoga com os conflitos históricos do espírito russo, confrontado com brutais extremismos religiosos e de estado. Nesse sentido, é inevitável evocar os exaustivos labirintos kafkianos, como em O Castelo, em que o Agrimensor jamais conhecerá seus superiores e a origem dos poderes que o oprimem. Tais personagens estão condenados a viver e sofrer toda a experiência narrada, mas não terão a oportunidade de transformação, de si ou do entorno, pois seus destinos estão traçados desde o princípio.

Os méritos dessa abordagem ecoam não apenas das bases culturais do filme, mas rebatem com efeito em sua atualidade. Afinal, tanto o velho mundo russo, que preserva a burocracia para encobrir a corrupção e a negligência do estado, como o novo mundo da competição e da livre iniciativa são nada além de sócios do consumismo que entorpece a população. Isso é colocado de forma bastante direta em Leviatã, que sintomaticamente chegou a ser taxado de “antirrusso” pelo ministério da cultura do país, mas volta a aparecer com importância em Sem Amor, ainda que em dosagens mais sutis.

É certo que o filme ganha com essa escolha, espreitando pelas fissuras da alma humana, uma das melhores qualidades do cinema de Zvyagintsev. O meio não justifica o comportamento, mas pontua certas desproporções, por vezes brutais, entre os contraditórios desejos e motivações dos indivíduos e as forças complexas, inclusive históricas, do mundo que habitam. Com isso o filme evita caracteres achatados, protegidos sob retóricas vitimistas: Boris (Aleksey Rozin), o pai do menino, é tão proprietário de sua omissão quanto Zhenya. Por isso ambos são também signatários das devidas consequências. Em seu foco estreito, ele tende a seguir repetindo os mesmos erros, enquanto ela se perde mais e mais, dado o forte ressentimento que a domina.

É por esta trilha que o desamor do título vai retornando a cada ciclo sob perspectivas mais nebulosas. À falta de respostas que o filme faz questão de evidenciar – o roteiro prefere deixar-nos cara a cara com o abismo -, o cineasta recorre a Gogol, escritor que mais de um século antes soube encerrar o célebre Almas Mortas numa expressiva inconclusão. “Oh Russia, para onde vais?”, repete Zvyagintsev em entrevista, no que poderia servir para qualquer tempo, obra e lugar. Com isso ele reafirma ser suficiente à arte refletir a vida em profundidade, cabendo ao indivíduo, a despeito de todas as dificuldades, tomar as rédeas do próprio destino.

Alguns textos podem terminar de modo semelhante a como começam. Mas esse artifício serve mais para rimar. Talvez para ir um pouco além: certos temas se beneficiam quando abordados indiretamente, refazendo o percurso dos personagens, o mergulho espiritual do autor. Sem Amor começa na floresta e a ela retorna, numa advertência de que a raiz do problema nem sempre se vê na superfície, naquilo que de imediato chama a atenção, mas no que está ausente, difuso no entorno, e que ainda não sabemos nominar. Momento incômodo, sem dúvida, é no entanto decisivo para a consciência, a diferença entre avançar ou continuar andando em círculos.

* Artigo originalmente publicado na revista cultural Mínimo Múltiplo, em junho de 2018.