Ambivalência (2004)

Textos selecionados de´Ambivalência´, coletânea publicada em co-autoria com Douglas Dickel em 2004
pela editora MovimentoPrêmio Nacional e os Livros – Autores-Revelação na 33a Feira do Livro de Porto Alegre.

 

ondas

se estou
por um segundo
de quando em quando
não quero ser
só para não estar
só de novo

se estou dentro
quero sair
para lá de fora
desejar entrar
ou então lá ficar
e sentir-me outro

se estou de fora
a curiosidade chama
quero entrar correndo
só para permanecer
durante um tempo
e depois ir embora

se estou querendo
tento logo não tanto
deixar o desejo vago
para a grande novidade
sou oferta constante
com motivo nenhum

se afinal conquisto
quero ir ainda além
ter mais do que sou
pensar mas na fuga
evitando a coruja
da sala de estar

 

cantos

cantos por todos os cantos
são tão calmos os pássaros
cantando pela tarde quente
sempre demasiados pássaros
sempre demasiados cantos
sempre demasiado tarde
sempre demasiado quente

 

café com leite

sinto dores nas costas. é um problema antigo. pelos anos. pelos dias. a marcação inexorável das horas. os sete minutos e vinte e dois segundos que me absorvem de pé. parado diante do fogão. curvo ainda mais as costas. e o sopro escaldante do tempo. conto até ferver e subir. fim de dia. café com leite.

sinto as pernas tensas. é um problema novo. pelas palavras. pelas reticências. a marcação inexorável do silêncio na réplica. as seis horas e vinte minutos de sono perdido que me absorvem nas águas do colchão. curvo ainda mais as pernas. sinto os joelhos junto à testa. conto até amanhecer e sumir. fim de noite. café com leite.

 

recomeços

somos as peças restantes
de diferentes brinquedos
esquecidos infantis

combinamos às pressas
as regras da hora
e não chega tempo
para aprender a jogar

somos soldados de plástico
e as nossas armaduras
serão trincheiras de papel

 

tempo interno

lentamente
vejo a relva crescendo
sinto o prenúncio da umidade do ar

a luz do dia mudou
ficou mais forte
branca
meio prateada
lânguida
meio prateada
branca
fiquei mais forte
a luz do dia não muda

sinto o prenúncio da umidade do ar
vejo a relva cedendo
lentamente

 

realidade virtual

sou uma peça. circulo. mantenho o prumo. a tensão.
tenho horas exatas. menos as que me pertencem.

sinto imagens. vejo fluxos.
percebo mais. nunca além.

tenho sido todas as minhas escolhas;
menos uma: a segunda opção
tenho estado em todos os lugares;
menos em um: o que não é aqui.

sinto estímulos. vejo entradas.
indico saídas. nunca além.

integro o espaço. circulo. peças. pedaços.
e não há nada. somos nada a fazer.

 

o tempo

ouço
o suspiro
do vento
e hoje
eu sei
é o tempo
é o tempo