Destruir e revelar

Antes de começar a ação, contemplei o lugar em silêncio. Pensei na história daquele quarto. Pelo estado das paredes, resquícios no chão, marcas nas janelas e no teto se podia imaginar que ali a passagem do tempo aconteceu com resistência e conflito. Remendos e escoras por todo lado fortaleciam minhas impressões.

Parti para o primeiro corte com a serra. Aceitei conduzi-la com certa liberdade gestual, como se estivesse pintando. Quando a serra faz contato com a superfície de madeira, todo o peso recai na lâmina e o corpo de quem a manipula é impelido com força na direção contrária. A direção do corte depende da força com que ela é impelida contrariamente à lâmina. É uma batalha entre a serra e o serrador.

No primeiro dia trabalhei com três linhas onduladas na parede. A precisão das curvas se deu pela própria incapacidade da serra mudar abruptamente de direção. Na medida em que cortava a parede, partes da mesma desabavam, pois que perdiam a aderência. E assim o trabalho foi se desdobrando: de linhas que lembravam um desenho no espaço, revelavam-se camadas submersas, as estruturas da parede e o lado inverso da madeira, texturas intercaladas, sobrepostas.

Partindo desse resultado, projetei o quarto numa folha de papel, tracei as linhas que tinha feito e passei a desenhar prolongamentos para esses movimentos. Aí se esboçava um projeto.

Mas nessa segunda etapa o trabalho foi se revelando um tanto brutal. Além dos cortes em ângulos difíceis, havia momentos em que era necessário demolir manualmente os resíduos que a serra não alcançava. Em que ponto se via a fronteira entre a criatividade e a destruição? Assim surgiu o conceito do trabalho: o precário equilíbrio entre destruir e construir. O retirar das partes, cortar, subtrair, apagar, destruir como forma de revelação da obra, princípio escultórico.

O desenho que surge à meio caminho da execução do trabalho se revela um mero instrumento de navegação que aponta caminhos possíveis entre escombros, pedaços do acaso. O corte das paredes se dá no gesto, que luta com a máquina e espera desse embate a revelação de um traço, de uma camada. Esse processo de escavação não oculta a sua brutalidade, lançando o artista no desconhecido, portanto em conflito com a própria memória, consciência e percepção no trajeto de assimilar a nova experiência.

Aqui penso a relação entre interno e externo, que caracteriza o movimento de abrir as paredes de um quarto fechado para o mundo externo, estabelecendo um contágio visual. Também a nossa percepção se dá desse modo, numa construção de contágio entre essas duas dimensões, uma que pertence ao sujeito, a outra dada no âmbito do mundo externo, sinalizando a subjetividade dos nossos olhares.

O que então se revela é a possibilidade de transformação do espaço a partir da percepção do mesmo: já não mais um quarto, numa casa  e num tempo específicos, mas um conjunto de ações palpáveis, gestos inscritos, visíveis, procedimentos latentes e a possibilidade da flexão de conceitos, dobrados no espaço e na consciência, propondo aquele lugar como experiência.

 

* Texto integrante do catálogo da exposição e do vídeo-documento Ocupação 192sobre intervenção homônima realizada em 2012.