Digitália (2007-08)

Textos selecionados da produção 2007-08 para ´Digitália´, obra em edição.

 

Papagaios

Os pássaros voam em bando,
telhas ondulam sobre os barracos quentes,
o ar é amarelo neste lado do cais.

Ruídos de domingo
fermentam em poças de marasmo,
no fundo um túnel, trens, carros,
a claridade mancha os ecos e o errante esbarra
nos sinais,
convergências, sentidos únicos.

Famílias desviam dos parques,
nas ilhas mais próximas ninguém padeceu,
a raiva carcome os olhos dos cães,
os mais espertos imitam gatos – papagaios
dividem vitrines com lagartos,
durante a semana vendem jogos de azar.

As linhas das torres ondulam sem razão,
espectros vacilam em tubos de ensaio,
olho pela vidraça
e os pássaros ainda não voltaram.

 

Cidade Maravilhosa

O dragão assoa a crosta do nariz no asfalto da avenida. Motoristas pedem água à beira mar, onde óleo corre aos pés do formigueiro. Três igrejas cenográficas confrontam direções opostas, à sudeste o delírio das grandezas encobre a submissão e quase ninguém que conheça o alfabeto sabe o que é respeito.

O sol escalda a mata atlântica prenunciando tempestade, antecipa raios geométricos como infiltração. A abóbada da praia ondula náuseas de vapor ao fim do dia, bem na hora que os cães sem raça cruzam a esplanada pra uivar. A lua não vêm, está grávida e não pára de chorar, soluça pétalas de gelo em domingos de marasmo.

Motocicletas infestam artérias ensolaradas, barracos bestiais em bairros de bolsas barrentas. Pólipos explodem cogumelos, proliferam fezes, deslizando espermas natimortos, enquanto os cientistas vestem branco e esterilizam as mãos em luzidias luvas de borracha. Eles empunham lupas à distância para acompanhar as estatísticas.

A barriga moribunda é um tormento, borbulhando entre coágulos de espera ao patamar. A lancheira da escola e o umbigo cheio de nós resvalando sebo das orelhas celulares. Esgoto aberto, o céu recai inesgotáveis vícios, quase tudo o que é passado se costura na garganta do indigente.

 

Desfiladeiro

Frascos
de óleos refletem vitrais
sob o fósforo trêmulo das velas.
Anzóis
naufragam no hábito
de horas mortas
à beira do cais.

As ondas
modulam abismos
e a nudez cingida dos corpos
inertes na areia.
Caravelas
talham o horizonte
em luxos difusos
cozidos às pressas.

Caracóis
chafurdam perfumes raros
enquanto as gazelas
se olham no espelho.

Garrafas
em cacos estrelam
o esgoto que escorre
pelo quebra-mar.
Seus rótulos
deságuam cores pálidas
entre as pedras.

A terra
atrai a razão
e a razão
a empurra no abismo.
Seus ecos
retornam vorazes
pedindo vingança.

Pássaros
decantam as asas
em pleno vôo enquanto
os bandos mais velhos
se fingem de mortos,
rolam descréditos
pelo desfiladeiro.

 

Amálgama da noite

Em horas incertas de selênio e zinco
deslizam os faros e os uivos dos cães – longínquos como a onda,
somem…
Entre disfarces, frases soltas, modas paragens imagens que não acabam
de se pôr,
sol que os olhos comem
pra morrer.

O descanso das noites de sexta não é a ciesta
e nem a vasta entrega,
multidão tendões em neuras fractais latejam lápis hidrocores
e a água reflete não mais que a música fina dos cristais em guerra –
cintila lânguida
como lâmina e lambe a borda coma da alma,
calma…
tudo isso passa.

Distendem-se os corpos pelo espaço exangue,
canil de mônadas singelas
ao afável desacordo dos harpões – somos um, milhões
não mais que o ar
pra deflagrar o desnorteio de tantos desabraços – dor que late
como o cão amigo, teu riso ainda ecoa breve
lá onde todos te esqueceram.

 

Tracejado

Cantos de silêncio
à deriva pelo tempo,
não se cansam e não se calam,
nem no ranger dos olhos,
nem na digitália das mãos.

Dedos em excesso,
a resina da vidraça
adere ao rosto
que se inclina
em desalinho.

Causa alvoroço
o adocicar
de tantos hálitos
deixados
como lembranças
de toques
que não chegaram
a acontecer.

Como um beijo distorcido,
um olhar que não se fixa,
uma palavra elaborada
assumindo sentidos
vazios, um vago
cumprimento
selando o improvável.