O paradigma da tela e a experiência da imagem sem bordas

Problematizar a tela – geralmente retangular – que enquadra toda sorte de imagens produzidas hoje não é simplesmente remontar às suas origens. Antes da pintura, que efetivamente constituiu o quadro, a moldura, já havia uma noção ao menos virtual de tela. Noção prática e inescapável, necessária na medida em que toda imagem só pode se fazer visível de encontro a um suporte. No caso dos tipos de representações anteriores à pintura, trata-se de pensar a tela como a própria área de inscrição, produto eminente de uma escolha e, num segundo momento, de uma necessária delimitação. As paredes das cavernas deram suporte às pinturas rupestres, ao mesmo tempo delimitando seu espectro expressivo e, o mais importante, determinando o próprio modo de expressão. O suporte e a delimitação de área que ele encerra não são passivos afinal, eles são os gestos inaugurais da obra.

Seguindo por este caminho, é possível encontrar na pintura o momento em que a arte ocidental se afirma como cultura. E é no centro dessa afirmação que está a tela. Uma tela particular, então chamada de moldura, carregando conotações e implicações um tanto diferentes e decisivas daquela da tela como área e delimitação. A área e a delimitação continuam, mas aqui trata-se de uma nova categoria do próprio espaço, um espaço abstrato, constituído para a representação, campo seguro e isolado para a imagem, separado da realidade, como em certo sentido não eram as paredes das cavernas ou dos palácios das épocas anteriores. O que essa pequena comparação encerra é bem mais relevante do que parece: o que se vê em jogo com a aquisição da tela-moldura é a própria assunção de separatividade com o espaço, uma divisão clara, uma definição de limites entre o que é considerado real e o que não é, espaço exclusivo da representação. Ou seja, o que se representa é claramente outra coisa que não o que é representado.

Várias questões interessantes podem advir dessa simples constatação. Uma delas diz respeito à cognição ou antes, ao efeito que a prática cultural disseminada da representação imagética – pensemos ainda na pintura em seu desenvolvimento até o século XIX – exerce sobre seus sujeitos. Os efeitos insuspeitos dessa permuta dinâmica entre sujeito e representação vão eclodir na modernidade, quando a fotografia põe a pintura em questão. A essa altura a pintura já produziu o seu legado, que vai muito além do patrimônio material e cultural das obras: a fotografia e a modernidade apenas revelam a artificialidade da separação entre espaço abstrato e espaço real, entre a realidade externa e a realidade interna dos sujeitos. Assim, mesmo que a moldura pretendesse produzir essa separação, não seria capaz de evitar os efeitos daquilo que no fundo, e de fato, se processava: as imagens da pintura passam a habitar o universo interno dos sujeitos, que passam a construir um mundo externo à sua semelhança.

Dito isto, é possível ir ainda um pouco além: nesse movimento em que a representação imagético-pictórica implica o sujeito, habitando-o e portanto reprojetando-se, como imagem e como ação, para o mundo externo, ocorre sem dúvida uma transmigração da tela para o novo plano. Trata-se da passagem ao positivismo racionalista e cientificista que domina progressivamente a cultura ocidental desde o renascimento. Em resumo, é a expressão por imagens do tipo de pensamento que separa, individualiza e categoriza os elementos da realidade empírica, tornando-os objetos de apreciação racional. A moldura portanto é a expressão da racionalidade sobre os antigos paradigmas da expressão e do sentimento que tiveram no romantismo o seu ápice tanto no comportamento e na cultura como na arte. A tela ressurge na modernidade de dois modos: como suporte e formato mesmo para a imagem, mas também como categoria do pensamento, passível de se transmutar em inúmeros modos de expressão além da própria imagem. Nesse sentido, problematizar a tela, enquanto paradigma de uma cultura de imagens, é antes de tudo problematizar as categorias de pensamento em que se inscreve, bem como os seus efeitos ou desdobramentos sobre os próprios sujeitos e sobre o mundo – de imagens – que estes inapelavelmente absorvem e constróem.

As bordas e além

Um primeiro problema se apresenta aqui. Se a imagem é uma categoria racional do pensamento, pois que está presa em sua moldura virtual, dentro e fora do sujeito, de que modo se poderia reencontrar na própria imagem a sua dimensão poética, perdida talvez? Teria essa dimensão poética – se de fato ela existe e é possível – alguma relação com o próprio espaço? O conceito de duração em Bergson parece vir de encontro a essas questões. Tratando de um contínuo entre a dimensão interna do sujeito e a exterioridade do mundo, a duração ainda assim admite divisões, que no entanto não lhe afetam a integridade de contínuo, conforme a citação que Deleuze faz do próprio Bergson:

“Direi, por exemplo, que há, de um lado, multiplicidade de estados de consciência sucessivos e, por outro lado, uma unidade que os liga. A duração será  a síntese dessa unidade e dessa multiplicidade, operação misteriosa, da qual não se vê, repito, como comportaria nuanças ou graus.”[1]

Pois bem, se as divisões compreendem as divisões que a própria moldura impõe, abre-se ao redor um campo bastante amplo, se não ilimitado, para a expansão da imagem. A moldura, afinal, só limita a imagem virtualmente, como o próprio pensamento é uma limitação virtual da totalidade dos fenômenos mentais possíveis. De modo que se pode inferir que sempre a imagem continua para além de si mesma na moldura, deixando a questão: isto de imagem que escapa da moldura e continua, será sua dimensão não racional e, em sendo, seria essa dimensão não-racional uma potência de expressão poética?

Aqui é preciso invocar Deleuze, sem dúvida, para deixarmos pagos os devidos direitos de propriedade sobre as noções de potência. Tal potência, no que tange à imagem, só poderá habitar em dimensões insuspeitas, para além mesmo do que é meramente visível. Em suas reflexões sobre a obra de Francis Bacon, Deleuze vai tecer a sua lógica da sensação, possível quando a imagem se torna figural e não mais figuração. A figura, para ele, produto de um labor medido sobre o cliché – essa inevitabilidade produzida pela repetição e que redunda nos excessos da cultura -, se torna figural na medida em que se desdobra sobre si mesma, revelando seus próprios avessos e aleatoriedades constituintes, sem contar os seus movimentos e investidas em relação às bordas, seu permanente questionamento ou translação em torno da virtualidade de seus próprios limites. Ou seja, no figural o cliché dá testemunho da máquina subterrânea que o produz, remetendo às bordas tanto à si mesmas quanto para fora, numa imagem total e de intensa energia latente, a potência do imperscrutável e do inapreensível constituindo a fluidez continuamente reversível da imagem, o que Deleuze vai chamar de sensação.

Pois bem, aqui também se delineia a idéia de que a potência de uma imagem deve estar relacionada com sua luta na direção das bordas. De modo que a imagem comportada e afeita às bordas assume uma conotação quase ingênua para os dias de hoje – ela pertence, afinal, aos domínios da representação pura e simples. Não pode haver imagem poética – no sentido de potente, que então é aquilo que se força para além de si mesma, de sua própria e exclusiva visibilidade passiva – sem que esta mantenha uma relação tensa com a própria borda. A tela, portanto, se torna um dos temas de qualquer imagem, pois ela é constituinte da imagem, ela diz algo da imagem, ela atravessa inelutavelmente a imagem ou, para simplificar, ela é sempre e no mínimo o começo e o fim da imagem, entendida como contingência e seleção.

Imagens em movimento

No entanto, para passarmos da sensação para a atmosfera, será necessário um exercício ainda mais complexo, uma expansão de maior fôlego no que respeita ao espaço e ao tempo da imagem. Pois não estaremos mais falando de uma imagem fixa, pictórica ou fotográfica, mas da própria imagem em movimento. Falemos do tempo, por enquanto, mantendo a imagem em movimento ainda dentro dos quadrantes da tela, sem questionar-lhe tais limites. É claro que falo aqui sobretudo do cinema mas obviamente do vídeo. O cinema vai propor uma experiência bastante mais complexa em seus efeitos sobre os sujeitos do que a simples operação cognitivo-mimética da representação. O cinema vai trabalhar em níveis diversos e mais profundos e ainda vai articular-se entre tais camadas de um modo mais brusco do que contemplativo, justo pela característica do movimento.

A imagem em movimento, em tese, não existe. Ela é uma ilusão produzida por um conjunto de arranjos técnicos anteriores à ela. Um deles é a sala escura, outro é o mecanismo de sucessão linear da sequência de imagens na simulação de um tempo (quase) real para a percepção normal do olho humano, os 24 quadros por segundo no cinema, os 30 frames no vídeo. A imagem em movimento é a ilusão de que um conjunto de 24 ou 30 imagens fixas, tão fixas e idênticas em estatuto como quaisquer imagens fotográficas, formam um movimento análogo ao real, observável no espaço. Essa ilusão é uma dimensão técnica, externa, um artifício mecânico e racional que encontra na sala escura o seu ambiente – ou caldo imaterial – de propagação. A abstração de qualquer realidade externa à sala escura esconde a técnica e autentica a ilusão: o acordo se faz tácito no espaço ilusionista.

A sala escura do cinema é um híbrido entre a herança do teatro, do palco italiano que mantém o argumento da representação diante dos olhos do público, como na tela de pintura na parede de uma galeria, e os espaços imersivos que serviam para a experiência dos panoramas, prática que se desenvolveu em larga escala sobretudo no século XIX. Se o arranjo do palco italiano soluciona o problema da visibilidade frontal do que é projetado, mantendo o público devidamente acomodado e em postura receptiva para a ilusão, a experiência dos panoramas traz a técnica de dissimulação dos artifícios para uma impressão o mais intensa possível de realidade – ou seja, ilusão. Os panoramas, segundo Oliver Grau, preconizaram o cinema como espetáculo, tendo logrado em seu tempo grande prestígio comercial. Disso se pode observar que tanto no panorama, que o antecipa, como no cinema, o que se tornou moeda dominante no jogo com o público são precisamente a imersão, de um lado, e o ilusionismo, de outro. Criar uma situação altamente propensa à recepção para a experiência com imagens o mais realistas possíveis, no sentido de ocultarem os artifícios que as conformam como tais.

Ora, a narrativa no cinema será herdeira direta das narrativas dos panoramas, para as quais Oliver Grau dá inúmeros exemplos, em especial os panoramas encomendados à respeito de guerras ou batalhas importantes, que tinham o objetivo básico de expor ao público, por meio de pinturas com ilusão de profundidade, as narrativas históricas que lhes correspondiam. Mas há diferenças importantes entre a narrativa do panorama e a narrativa do cinema. Além das óbvias, oriundas de suas linguagens particulares, é importante atentar para o caráter interno e visual do panorama e para o caráter externo e projetivo do cinema. A narrativa do panorama se dá no interior do próprio panorama, numa articulação por figuras de que a imagem como um todo resulta como narrativa a ser perscrutada pelo olho e apreendida pela razão. No cinema a narrativa se dá fragmento a fragmento, num todo que nunca é visível em seu conjunto mas cuja existência é indispensável para a própria forma do filme, seus ritmos, intensidades, o ocultamento ou antecipação de seus elementos de figuração, gerando uma série de movimentos convergentes e divergentes entre aquilo que é dado e sua apreensão pelo espectador na sala escura. Ou seja, a narrativa no cinema nunca se conforma ao caráter apenas interno das imagens, mas sempre em relação com sua apreensão, momento a momento, pelo espectador – o que podemos sintetizar pela idéia de expectativa, o espectador está sempre esperando pelo devir das imagens cinemáticas.

Trata-se, obviamente e simplificando, de uma experiência completamente diferente da representação e portanto de seus efeitos sobre a cognição dos sujeitos. Aqui será necessário pensar em recognição, no sentido dado ao termo por Walter Benjamin. A montagem no cinema é o artifício que, no movimento, justapõe as partes na ilusão narrativa. O movimento ele mesmo produz uma experiência que não pode ser contemplativa, que não pertence apenas à visibilidade do olho. A imagem que se movimenta e que se sucede a outra imagem investe para além da consciência do sujeito e portanto não afeta apenas a sua cognição, ou seu modo de ver o mundo. Caracterizada pelo choque, onde o movimento entra em embate frontal com o pensamento estabelecido na cognição, produz-se um movimento do pensamento sobre si mesmo, uma espécie de dobra que será análoga aos espaços imperceptíveis entre os planos montados de imagens. Benjamin pode esclarecer essa questão pela metáfora da escrita, quando afirma que mesmo os espaços entre as palavras, entre as letras, são parte fundamental do texto, pois é nelas que a subjetividade profunda do sujeito se lança para navegar a si mesma. Ou seja, o texto é um pretexto em cujos espaços residem as possibilidades do sujeito se encontrar, sem que o texto seja descartado – ele se sugere como cartografia para essas dimensões que se abrem.

Da mesma forma, o filme montado em pedaços de tempo-imagens traz consigo todas as suas emendas e justaposições, espécies de buracos negros em que olho do inconsciente sempre recai, nunca sem levar consigo um mapa sugestivo do texto narrado, um modo seguro de navegação. Mesmo assim, e mesmo que por sugestão, a navegação é sempre para dentro do pensamento do próprio sujeito e portanto constitui uma experiência que só a ele pertence. De modo que a experiência do cinema é a experiência do choque dado pelo movimento forçando o pensamento para dentro de si mesmo, conforme observa Gilles Deleuze em “A imagem-tempo”. Mas como esse movimento não é unilateral ele retorna, vai ao fundo e retorna para a narrativa, produzindo o que Benjamin vai definir como recognição. Ou seja, o choque que produz a entrada e a possibilidade da recognição será a autêntica experiência moderna com as imagens, a experiência poética possível na medida em que ao lançar-se ao fundo, para além da narrativa, reencontra as potências do ser para então retornar e inundar o plano externo. Fim da representação enquanto experiência estética.

Sensação e atmosfera

 No entanto ainda há duas questões para serem pensadas no que diz respeito à experiência com as imagens em movimento. A primeira diz respeito à imersão e ao ilusionismo, a segunda à passagem da sensação para a atmosfera. As duas estão interligadas. O ilusionismo no cinema não é de modo algum da mesma ordem do ilusionismo na pintura, por exemplo. O cinema exige um arranjo bastante completo de elementos para que a ilusão seja favorecida. Estes arranjos estão tanto no interior das imagens do cinema como fora, no espaço em que os filmes se projetam. No interior do filme significa pensar na composição dos quadros, da luz, das cenografias, figurinos e atores, a movimentação dos personagens, seus olhares e falas, suas relações com o espaço interno, o tempo e o ritmo de todos os movimentos e composições.

A isso dá-se o nome de mise en scene, que em seu conjunto é o responsável por uma atmosfera própria a cada cena, sequência ou ao todo do filme. As partes em separado não podem conter atmosfera, elas não funcionam isoladamente. A atmosfera reside no conjunto enquanto que a sensação poderá residir nas partes. Quando o olho perscruta, no plano de um filme, algum objeto específico, está estabelecendo com o mesmo uma experiência de sensação, na medida em que o olho apreende a visualidade do objeto a partir da razão. No conjunto da imagem, porém, não se trata de uma experiência de sensação, mas de atmosfera, na medida em que a consciência do sujeito é bombardeada por uma totalidade de elementos que juntos produzem uma forte sensação de presença e realidade, a qual podemos chamar de atmosfera. A atmosfera portanto exige o sujeito, ela só existe com o sujeito, pois que se torna possível em aliança com as suas camadas mais profundas, acessadas pelo movimento e pelo choque.

Mas não é apenas isso. A atmosfera traz uma dependência direta do espaço da projeção, da sala escura, diferentemente da sensação, que depende exclusivamente da analítica do olho. Deste modo, a atmosfera não é algo que está no interior de uma imagem construída, arranjada, mas que se produz em sua propagação pela sala escura, espaço de subjetividade entre a imagem e o sujeito, ativando o ambiente e sensibilizando os corpos, penetrando por todos os poros. É como se a atmosfera tornasse o filme real, pois que constitui o filme em forma sensorial pura. Enquanto a tela mostra, no visível, a imagem que lhe corresponde, a atmosfera é essa amálgama invisível de sensações, sentimentos, emoções e ritmos que inunda o espaço, ligando o filme ao sujeito pela porta dos fundos. O filme então se torna real, a sala escura se torna imersiva e a imagem se torna ilusão.

A partir deste momento, passamos a ter a possibilidade de uma experiência desterritorializada com as imagens, pois que se dá no próprio espaço, o sujeito como parte do mesmo. A desterritorialização é um efeito essencial da sala escura, deslocamento que antecede a imersão. Quando a projeção acontece, a imersão se torna possível, pois a desterritorialização do sujeito já se deu em seu simples estar na sala escura. É mesmo possível pensar num corpo que desaparece materialmente na escuridão da sala para permanecer apenas sentido, sensorializado. Do próprio corpo o sujeito tem apenas a sensação de presença, ou o calor orgânico de si mesmo, seus movimentos internos, mas o corpo enquanto matéria visível cede passo para o que vem projetado. A imersão nesse sentido acontece diretamente sobre esse corpo desaparecido e no entanto hiper-investido de suas potencialidades sensoriais. A imagem atinge o olho, decodificador da razão, e a atmosfera inunda o corpo como experiência, os dois movimentos em fluxo produzindo a ilusão de realidade.

É claro, porém, que aqui se fala do cinema mais narrativo, primo direto dos populares panoramas. Não se trata então do cinema do choque, cujas bases Deleuze lega a Einseintein, uma vez que a narrativa literária tem o poder de sedar o espectador para o choque do movimento, envolvendo-o suavemente num conjunto de elementos mais ou menos dados, mais ou menos conhecidos, que não lhe exigem o esforço do pensamento. O choque, por seu turno, está ligado ao tipo de montagem intelectual preconizada e praticada por Eisenstein no contexto do cinema de vanguarda russo, propondo uma construção dialética para as imagens.

“É o cinema do soco, ´o cinema soviético deve rachar os crânios´. Mas assim ele dialetiza o dado mais geral da imagem-movimento, estima que qualquer outra concepção enfraquece o choque, e deixa o pensamento facultativo. A imagem cinematográfica deve ter um efeito de choque sobre o pensamento e forçar o pensamento a pensar tanto em si mesmo quanto no todo. É esta a definição precisa do sublime.”[2]

A montagem dialética está no extremo oposto da montagem narrativa linear. Se esta conduz o espectador adiante através de argumentos-imagens reconhecíveis e associáveis, aquela se funda sobre a própria força do choque, justapondo imagens díspares, contraditórias e forçando a interrupção do pensamento superficial habitual para dentro de si mesmo.

Espaço sem território

O espaço da instalação, deste modo, compreende o espaço da sala escura imersiva do cinema, no entanto sem a orientação frontal do palco italiano onde se projeta o filme e, portanto, sem a disposição dos assentos que acomodam os espectadores em posturas de conforto. Ou seja, as imagens estarão dispostas em todo o espaço, em todas as direções e portanto desterritorializando o próprio espaço antes dos sujeitos que nele adentram. Quanto aos sujeitos, terão o espaço como campo de navegação, para o qual seus corpos estão livres para a imobilidade e para o movimento, entretanto sob condições de baixa ou nenhuma visibilidade, o que lhes acentua a auto-percepção e disponibilidade sensorial.

Conforme tal disposição, a experiência da instalação naturalmente desdobra alguns conceitos inevitáveis e fundamentais: continuidade e descontinuidade, intensidade, presença e desdobramento, para citar aqueles que se relacionam entre si por meio da variável do tempo. A descontinuidade externa das imagens encontrará no sujeito a tendência à reversibilidade interna das mesmas enquanto continuidade. Ou seja, se a instalação oferece em si uma experiência inapreensível no todo, portanto descontínua e patente da navegação no espaço, é no sujeito que ao menos partes de continuidades se processam como tentativas de apreensão. A intensidade e a presença estão por seu turno associadas à própria experiência estética, estando ligadas diretamente aos vários estados a que os corpos podem se entregar em sua exploração do ambiente instalativo. Quanto ao desdobramento, trata-se das próprias imagens que se projetam no espaço, ou seja, espacializam-se e assim radicam o próprio sujeito no espaço. A matéria se desdobra em imagem, a imagem se materializa em permuta constante.

Cabe aqui um exemplo: se o corpo se vê na maior parte do tempo imerso na escuridão do ambiente, não é menos verdade que o mesmo se ilumina na medida em que se acerca ou perscruta uma projeção ou um objeto do qual emana luz. Ora, o corpo que desaparece para existir apenas em sensação no sujeito que deambula pelo ambiente retorna episodicamente à sua visibilidade sem no entanto retornar à sua constituição matérica original: ele agora está afetado pela imagem, pela cor, pelas texturas e movimentos que encerram as projeções, tornando-se ao mesmo tempo um objeto ou suporte de projeção e ele próprio imagem-objeto no espaço. É o que acontece com as imagens, que não estão fixas em seus suportes mas refletem e emanam seus elementos, rebatendo e preenchendo o espaço.

Abre-se então a única possibilidade de encontro com alguma totalidade: a imagem que se torna o próprio espaço assume um corpo imaterial e no entanto visível, impalpável e no entanto sensível, lugar em que sujeito e espaço continuam-se um ao outro, alternando entre a contingência e a duração.

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[1] DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. p. 34

[2] DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. p. 192.