Paisagens tecnológicas: experiências no tempo e no espaço da vídeoinstalação

A problemática da imersão no ambiente das vídeo-instalações de pronto suscita duas questões de relevo. A primeira solicita uma definição, ou circunscrição, de imersão. A segunda interroga sobre os aspectos comuns entre a experiência na paisagem natural e na paisagem instalativa, pode se falar em imersão na natureza? Comecemos pela primeira questão.

Imersão como processo

A imersão é termo ou conceito aplicado em geral ao mundo das artes e espetáculos a partir do século XIX, com a popularização dos panoramas. De acordo com Oliver Grau (2007), os panoramas respondiam às urgências da época, cujo sentido de realismo era impulsionado pela fotografia, forçando a pintura a buscar condições de contemplação junto ao grande público.

Os panoramas consistiam em grandes pinturas murais, realizadas com efeitos de profundidade hiper-realista, em geral versando sobre batalhas e temas históricos relevantes. Essas pinturas eram dispostas em espaços condicionados, sob baixas luzes e em paredes curvadas, acentuando o realismo das representações. O chamado ambiente imersivo tem como premissa potencializar a sensação de realidade das imagens. Em linhas gerais, está caracterizado pela concentração do foco naquilo que é apresentado, pela diminuição e controle de quaisquer distrações, mesmo imperfeições que possam solapar ainda que momentaneamente a vivência do que é apresentado como real.

Os panoramas foram precursores das salas de cinema. E nesse sentido, no que tange aos ambientes das artes e dos espetáculos do período moderno para cá, trata-se de um conceito cada vez mais identificado e comprometido com o emprego da tecnologia. De qualquer forma, e para fins de melhor discutir a imersão sobretudo como efeito nos sujeitos, vale mantermos ainda em aberto o foco da análise, compreendendo que em essência a imersão é uma experiência presente antes de tudo no contato com o mundo, experiência afinal desejada pelo ser humano, que busca na arte, no espetáculo e na tecnologia uma possível interface.

Vejamos o que Oliver Grau (2007) tem a dizer: “a imersão é sem dúvida fundamental para qualquer compreensão do desenvolvimento da mídia, apesar de o conceito parecer um pouco opaco e contraditório.” Segundo o autor, “obviamente, não há uma simples relação de ´ou-ou´ entre distância crítica e imersão”, pois a imersão depende também, e muito, da disposição do observador. De qualquer maneira, Grau prefere caracterizar a imersão em linhas gerais pela “diminuição da distância crítica em relação ao que é mostrado e pelo crescente envolvimento emocional no que está acontecendo” (GRAU, 2007, p.13).

A problemática da imersão parece envolver pelo menos três instâncias interligadas: a primeira diz respeito à própria imagem e seu estatuto, como obra, autoria, proposição, estética, linguagem; a segunda se relaciona com aquilo que se processa no espectador, como alerta Grau, a relação entre distância crítica e envolvimento emocional, dependentes da disponibilidade e dos recursos culturais e sensoriais dos sujeitos; e a terceira finalmente abrange tudo o que envolve, apóia ou produz a imagem (obra) no atravessamento complexo dos ambientes, dispositivos e modos de apresentação, em suma a experiência da convergência das técnicas e tecnologias na proposição dos espaços estéticos.

No entanto, podemos nos ater ainda um instante na observação de Grau à respeito da imersão como “processo, uma passagem, uma mudança de um estado mental para outro” (GRAU, 2007, p.13). Uma tal definição pressupõe sem dúvida o tempo, no sentido de um transcurso mesmo, para que a passagem de estados possa de fato ocorrer. A relação desta temporalidade imersiva com o conceito de duração em Bersgon é bastante conveniente, até porque se assemelham e se complementam mesmo em seus desdobramentos: para Bergson, a duração é uma continuidade que atravessa os fenômenos, unidade ou concomitância, um tecido atemporal (DELEUZE, 1999, p. 34). Se por um lado a própria duração não é divisível, nela cabem todas as divisões possíveis do tempo cronológico, todas as temporalidades e graus parciais de intensidade. É a isso que se refere Grau quando fala na imersão como processo, passagem ou mudança de estados. Não há uma imersão, mas incontáveis modos da experiência imersiva.

Os graus de imersão dependem de uma combinação de fatores, dados pelas variáveis da obra, do ambiente, da tecnologia e do público. A divisão, contudo, é mera e precariamente instrumental, na medida em que o efeito imersivo de uma obra se dá num todo como experiência, ou seja, a obra está em diálogo ou em construção com o ambiente e ambos, obra e ambiente, estão ligados (e são afetados) entre si pela tecnologia. Finalmente, o público, contemplador, espectador, interator ou como venha a ser chamado de caso para caso, estabelecerá a sua relação − em parte individual e em parte coletiva − com a obra e seu entorno, despojando-se em níveis mais ou menos intensos de imersão, na medida mesmo de suas próprias disposições críticas, intelectuais e cognitivas.

Nos dois extremos pensáveis, à título de exemplificação, podemos situar a galeria de arte nos moldes tradicionais, o “cubo branco” como o classificou Brian O’Doherty (2002), na intensidade mínima de imersão, exigindo uma relação mais crítica e intelectual, social mesmo, com as obras; já na outra ponta da imersão, em sua (suposta) máxima intensidade, a lista pode ser tanto mais extensa: do cinema à instalação (ambiental, vídeográfica, sonora, computacional, interativa), ao vídeo, às projeções em modos variados e ao mapping, à experiência fulldome. O projeto “Cosmografias Sonoras” é uma experiência em fulldome em desenvolvimento pelo Laboratório Interdisciplinar Interativo – LabInter/UFSM, que participa do Workshop Undestanding Visual Music 2015-16, promovido pelo CEIarE/UTREF – Universidad Nacional Tres de Febrero, em Buenos Aires, Argentina.

Deste modo, dois aspectos parecem importantes na experiência imersiva: o primeiro diz respeito a que tipo de demanda, necessidade ou objetivo, nos sujeitos, responde a imersão; o segundo se refere aos graus e intensidades da experiência e suas respectivas aproximações com as noções de arte e espetáculo. Afinal, toda experiência estética é em algum nível imersiva. Não é exatamente o que afirma Oliver Grau, mas tal conclusão se insinua bem em suas proposições. Ele traça uma certa linha de continuidade entre ilusão e imersão, em que a primeira circunscreve a arte representativa do passado e a última a própria experiência com as imagens de hoje. Entre esses dois momentos o autor pontua uma passagem, que corresponde ao período moderno, em que situa os panoramas do século XIX como experiências decisivas numa transição de ambientes, do moderno ao contemporâneo.

Grau traz um detalhado estudo sobre as ruínas da “Villa dei Misteri”, em Pompéia, cujos murais apresentam um misto de traços miméticos e ilusionistas. Em primeiro lugar, o autor chama a atenção para o efeito almejado − e logrado − pelos afrescos:

Através do dispositivo aparente de alargar a superfície da parede para além de um único plano, o recinto surge maior do que seu tamanho real e conduz o olhar do visitante para a pintura, borrando as distinções entre espaço real e espaço imagético. (GRAU, 2007, p. 25)

Eis então uma manifestação remota da imersão no modo como ela vai ressurgir nos panoramas do séculos XIX e seguir através da contemporaneidade.

Os ambientes, ou salas, a que se refere Grau à respeito de Pompéia não devem às cavernas que abrigavam as pinturas rupestres. Lá (na antiguidade) também já se ensaiava a representação do movimento, especialmente dos animais no contexto dos rituais de caça, em representações não apenas miméticas. Ao que parece, o conceito de ilusionismo não tem época, pois que pertence antes a um impulso do ser, o que fica sugerido na conclusão de Grau à respeito do condicionamento do espaço: “tal disposição cria uma ilusão de estar na imagem, dentro do espaço da imagem e de seus eventos ilusórios” (GRAU, 2007, p. 25).

O que se está insinuando, queiramos ou não, é a um impulso natural, através dos tempos, pela experiência “na imagem, na ilusão”. Ainda no contexto da “Villa dei Misteri”, a definição de ilusão não inclui narração, embora as pinturas tragam tais elementos em sua face mimético-ilustrativa: “os eventos descritos (nas pinturas) não são mostrados em sucessão mas como unidade espacial e temporal” (GRAU, 2007, p. 27), comenta Grau e continua:

Para aumentar o efeito da ilusão e manter a continuidade, a luz entra na câmara a partir de uma abertura na parede, imediatamente abaixo do teto, que é pintado para representar rochas pendendo de uma gruta. Esta construção é semelhante ao método de iluminação utilizado mais tarde em panoramas. (GRAU, 2007, p. 31)

Várias especulações pertinentes são possíveis a partir dessas observações. Em primeiro lugar, a noção de que a imagem pode ser decomposta em pelo menos duas dimensões elementares: a primeira mimética, figurativa, portanto visível, material e palpável, dirigida ao escrutínio intelectual; a segunda subjetiva, dada por arranjos espaço-temporais que se relacionam com os estados psicológicos e afetivos do sujeito. Com isso voltamos à definição de Grau sobre imersão, que sugere uma diminuição do juízo crítico em detrimento do envolvimento emocional.

O segundo ponto diz respeito ao impulso que perfaz esta outra dimensão da imagem. Tanto no caso de Pompéia como no exemplo das pinturas rupestres, trata-se da representação das figuras em contextos religiosos-rituais. Ou seja, o desenho e a pintura, enfim a representação imitativa do mundo visível, estava ligada ao ritual, que é da ordem da vivência, da mediação entre mundos, matéria e subjetivação. Em ambos os casos, esperava-se que as figuras comungassem com as transformações desejadas ou em precipitação entre o mundo externo e o interno dos sujeitos. A imagem no ritual pertence à ordem da magia, símbolo de acesso, canal de comunicação de mão dupla, conforme Grau outra vez: “a imagem é uma porta de entrada, que permite que os deuses entrem no espaço do real, e, no outro sentido, transporta seus assistentes mortais em cena” (GRAU, 2007, p. 29).

Caverna de Laucaux, descoberta em 1940, na França: pintura rupestre
era realizada no ambiente fechado das cavernas, com finalidades rituais.

Diante disso, não é difícil identificarmos o período clássico da arte ocidental − em oposição, por exemplo, ao próprio Renascimento, com suas íntimas ligações com a expansão do cristianismo − como aquele em que a razão se impõe à emoção, para seguirmos balisando com a imersão. A galeria de arte surgida nesse contexto será um espaço de baixa imersão, na medida em que as obras são dispostas sob arranjos não-ritualizados, não imersivos. Estamos no alto império da razão e da linguagem, os espaços da arte são antes ambientes claros e arejados, lugares de encontro, de convívio, de prática social, as obras servindo como mediadoras de narrativas, ambiente profícuo para que a estética se apresente como disciplina de retorno ao que é essencial, tentando religar a arte ao mundo, aos seres.

Mas a questão, ao que parece, é que do século XIX pra cá a demanda imersiva ressurge com matizes variados e insuspeitos. O exemplo mais claro são os panoramas, que lograram enorme sucesso de público na época, e que nada mais eram do que o resgate − ou ressurgimento − de afrescos murais tais como os de Pompéia, apenas com o notável aperfeiçoamento técnico e estético à disposição na época. Da mesma forma, e algumas décadas adiante, a própria galeria de arte vai se encontrar − ou ressurgir − num contexto sacralizado, por mais que não pudesse admitir isso. É o cubo branco denunciado por O´Doherty, templo-alvo de desejos e ataques por parte das várias vanguardas modernistas.

Ou seja, a demanda “imersiva” flerta pelas bordas com as manifestações estéticas na contemporaneidade. Sua relação com a razão tem algo de dialética, na medida em que o debate artístico formal tende a garantir-se certa reserva de domínio sobre seus impulsos e efeitos imprevisíveis. No entanto, as dificuldades desse diálogo, e o fato inconteste da supremacia da mediação racionalizante sobre a experiência direta do sentimento, se traduzem com evidência nas distorções sofridas pelos processos e manifestações estéticas dos últimos tempos.

Estamos falando do espetáculo de que os panoramas, e logo mais o cinema, serão os expoentes. Sob esta perspectiva, é possível pensar o ilusionismo, como técnica de condicionamento do ambiente, como elemento chave no invólucro que estetiza o espetáculo. Quer dizer, se o espetáculo se utiliza largamente das técnicas imitativas, representacionais e narrativas para dar semelhança − ou melhor, verossimilhança, na expressão de Aristóteles (2008, p. 54) − entre figura e realidade, é o ilusionismo como disposição e técnica que tem o poder de lhe mistificar, perfazendo sua atmosfera e ativando-o como realidade de segunda ordem, ilusória, virtualizada, experienciável em imersão.

Mas não é o espetáculo que interessa aqui, como tampouco é objetivo fazer crer que o debate estético, em qualquer nível que seja, possa ser reduzido à dicotomia razão versus emoção. Interessa pensar o espetáculo como categoria-limítrofe, espécie de apropriação ou desvio, que se serve da arte, suas técnicas, processos, imagens, linguagens e suportes de expressão, no entanto sem constituir arte de fato e muito possivelmente sem pretendê-lo. Nessa condição, o que permanece em aberto no espetáculo é a estetização do próprio ilusionismo pelo ilusionismo, como dimensão do entretenimento puro e simples, deixando assim sua demanda latente sempre em aberto. Quer dizer, se o impulso ritual que, já discutimos, perfaz a origem do ilusionismo e da imersão, ligando o mundo da figuração (racional, linguístico) com o mundo da subjetividade (ritual, emocional) é o mesmo que investe no espetáculo, fica então às claras a latência − não realizada, frustrada − dessa damanda. É como se o espetáculo prometesse, sem cumprir.

É claro que é possível objetar que tampouco a arte seja capaz de cumprir com tais demandas, de conectar as dimensões oníricas e imagísticas do ser ao mundo concreto, material e visível. Nem toda arte em sua história ocidental se pretendeu a isso, como não se pode senão arbitrariamente ditar que a demanda primitiva e ritualística possa constituir a autêntica origem e demanda da arte. A intenção, longe de buscar identificar autenticidades ou inautenticidades segundo qualquer critério estético, por embasado que seja, é localizar esses aspectos mais ou menos semelhantes, mais ou menos comuns em diversos pontos da história das manifestações artísticas, os quais de algum modo podem nos dar base para constituir um parâmetro sensível, poético mesmo, sobre o qual assentar pesquisas e processos de construção de paisagens em ambientes de vídeo-instalação.

Natureza e artifício           

Com isso podemos então voltar à segunda questão aventada no princípio de nossa discussão sobre a imersão. O que de comum pode atravessar a tecnologia que produz uma paisagem poética, estimulada pelo sensorial, e a paisagem natural? Quais podem ser as diferenças e semelhanças entre a experiência poética, mediada pelos dispositivos tecnológicos e pelas imagens sintéticas, e a paisagem orgânica, disposta no corpo do mundo natural? Em outras palavras, podemos falar de algum tipo de imersão quando estamos na paisagem natural?

Aposta-se que a paisagem poética possa ser evocada por meio de estímulos mentais, emocionais, sensoriais – memórias, afetos, idéias, sensações.  Em suma, os mesmos afetos e percepções que se ativam no sujeito diante da paisagem real. Mas a paisagem poética, como artifício, exige a tecnologia, qualquer tecnologia, como fonte para os estímulos que deseja proporcionar. É essa mesma tecnologia que no ambiente instalado precisa de alguma maneira desaparecer para que o efeito de imersão possa ser ao máximo intenso e bem sucedido. Ora, de que tipo de tecnologia estaríamos falando no caso da paisagem natural? De onde vêm, qual ou quais são as fontes dos estímulos vários que nos produzem as sensações similares da paisagem que tanto queremos transferir para o ambiente da arte?

Jean Luc Nancy (2014) pensa na tecnologia como fenômeno indissociável da natureza da qual ela própria é derivada. Claro, a história recente da tecnologia, do vapor à fibra-ótica, é a história da busca, exploração e refinamento dos modos de produzir energia, núcleo imprescindível a qualquer célula ou sistema vivo, em transformação. Em outras palavras, é a história dessa nossa obstinação desde as cavernas − lembremos da descoberta do fogo pelos pré-históricos −, que é antes de uma necessidade de conhecer da natureza as suas fontes “mágicas” de energia. Afinal, quanto mais o homem é capaz de deter e manipular a energia, essa mesma que, parece, anima todas as coisas, tanto mais autônomo, poderoso e livre ele é.

Idiossincracias à parte − pois não é o caso debatermos em que possíveis direções corre esse movimento −, importa aqui a pouca ou nenhuma diferenciação que Nancy faz entre tecnologia e natureza, o que leva a repensar o próprio emprego da noção de artificial. A distinção entre natural e artificial pode ser muito útil em sua faceta instrumental, ao diferenciar aquilo que traz a marca da intervenção humana. E tal distinção é importante na medida em que, entre a paisagem natural e a paisagem poética, é o sujeito humano que se coloca, como problematiza a obra de Miguel Chavalier, que utiliza uma natureza sinteticamente construída para criar uma interação do tipo “como se fosse natural” com o público.

A questão não pode deixar Kant de fora ao menos num aspecto que dialoga perfeitamente com as idéias de Nancy: a natureza é atravessada por uma técnica, ela é uma tecnologia. O filósofo alemão está se referindo, claro, à sua observação dos ciclos naturais, das rotinas dos insetos e dos animais, das relações complexas entre a relva, as plantas, a terra e o ar, elementos em simbiose permanente, permutando nutrientes, calor, energia. Ou seja, a técnica da natureza, conforme Kant, diz respeito a um movimento de combustão, de produção, consumo e transformação de energia em incontáveis micro-ciclos e macro-ciclos que são responsáveis pela máquina do mundo, o movimento de todas as coisas.

É claro que aqui o olhar filosófico e especulativo de Kant (2012) revela a sua magnitude idealista e romântica − própria de sua época − , em que os argumentos lógicos chegam a ceder para o fervor da poesia. Isso é muito bom e pode nos interessar, claro, pois é neste mesmo viés, entre a razão e a sensação, que talvez possamos identificar o elemento que atravessa as duas formas de tecnologia abordadas: a tecnologia “artificial”, criada e operada pelo humano, e a tecnologia “natural”, que se produz espontaneamente no mundo, pelas reações cíclicas entre os elementos da chamada natureza.

Afinal, há pelo menos duas maneiras de experimentarmos qualquer paisagem natural: relacionando-nos por intermédio de sua imagem cultural, a paisagem como representação, numa experiência portanto contemplativa, ou adentrando os seus domínios com os sentidos disponíveis, abertos, em deriva de fato, numa experiência sensorial. No primeiro caso, sabemos, trata-se de manter-nos de alguma maneira omissos à técnica que anima o mundo. Ou seja, estaremos tanto mais imersos na paisagem quanto mais estivermos entregues às emoções, quanto melhor soubermos nos relacionar com a paisagem emocionalmente.

A paisagem pintada, por exemplo, que nos condiciona à contemplação de volta à paisagem natural, está carregada de atributos que conduzem a esse estado inerentemente imersivo. E a tecnologia está implicada aqui: o tecido, a moldura, a tinta, o pincel e toda a gramática da perspectiva, da figura e do fundo, do claro-escuro, das gradações de cor, intensidade e luz. Desconstruir analiticamente o emprego e funcionamento dessa tecnologia, tanto na paisagem pintada como na paisagem natural, é obra da crítica, do intelecto que conscientemente se dirige a perscrutar, a sondar as bordas, as dobras do visível, buscando um entendimento ou apreensão mais profunda da constituição e do movimento das coisas, da matéria e da energia, dos impulsos complexos que animam o mundo ao nosso redor. Assim como coube ao pintor moderno analisar e criticar suas ferramentas para recriar a pintura, cabe ao sujeito permitir-se pensar para questionar a natureza em seu idealismo romântico. Por trás das belas formas e afetos, ambos encontrarão o mecanismo, a técnica, a tecnologia.

Mas essa consciência crítica, é bom lembrar, apenas participa do contato com a paisagem. Ela não pode dominar a experiência sob o risco da mistificação. É o caso de praticamente todos os estilos da história clássica da pintura, tomados no âmbito leigo e popular, fora do meio especializado. Não é o que propomos aqui: a curiosidade que questiona, que provoca a consciência para dar um passo a mais, investigando as aparências e tocando mais a fundo no movimento dos elementos materiais e imateriais que constituem o mundo, é sem dúvida. Mas como dissemos, ela participa, é um dos elementos convocados na experiência.

A deriva pela paisagem é inviável sem algum tipo de parâmetro ou movimento de escrutínio analítico, conceitual, intelectual, sob o risco de tornar-se um apanhado de registros sensórios díspares, sem qualquer conexão entre si − o que contraria, por exemplo, a imagem kantiana de uma técnica da natureza, perceptível no funcionamento de seus ciclos. Tal experiência, sabemos, não pode coincidir com os fatos que acabamos de elencar: a paisagem natural é dotada de técnica, de conexões, de relações, de movimentos e ciclos. Não parece interessante ao nosso contexto empregarmos qualquer critério aleatório ou de ruptura nem abrirmos mão dessa rica relação entre paisagem natural e paisagem poética, entre a obra e seu modelo, entre a fonte e seu referente. O que importa é o modo, ou amplitude do olhar, com que se dará a mediação, a relação. Afinal, é claro que é sobre o olhar que estamos falando: na pintura clássica, o olhar se restringia à janela visível, à representação. O que circunscreve o olhar na instalação?

Talvez o conceito de imersão possa nos ajudar a elaborar algumas hipóteses, quem sabe até mesmo formular respostas a essa questão. Pois entendemos que a imersão é esse estado de entrega e envolvimento mais emocional do que racional, que nos permite tomar o que nos é dado ou apresentado numa experiência o mais intensa possível. Os graus dessa intensidade é que respondem pela noção meramente linguística de catalogarmos as coisas e eventos como reais. No sentido da imersão, real é um dado da intensidade da experiência: quanto mais intensa, ou seja, quanto mais envolvidos emocionalmente, mais real ela nos parece, mais real a impressão da experiência em nossas memórias e afetos. De modo que quanto mais despojados e entregues à paisagem, seja a paisagem natural ou pintada, tanto maiores as possibilidades dessas experiências se afigurarem aos nossos afetos em similares escalas de intensidade e então de realidade.

A vídeo-instalação, nesse contexto e de uma maneira ainda ampla, diz respeito à proposição de ambientes vivenciais, com graus normalmente altos de imersão, supondo o contato mais direto, a experiência mais intensa possível, o maior impacto ou impressão em seu registro geral − subjetivo, emocional, afetivo − no sujeito. Herdeira do cinema por intermédio das técnicas de videografia e projeção, a vídeo-instalação encontra, combina ou funde a imagem em movimento com o espaço das artes, produzindo ambientes de experiência atmosférica, multisensorial e imersiva. O trabalho de Pipilotti Hist dá testemunho dessas propriedades da vídeo-instalação, elaborando ambientes imersivos a partir de vídeos produzidos com atores, elementos cênicos e tecnologias do cinema (MARTIN, 2006).

É claro que diante de uma definição assim ampla tudo ou quase tudo parece possível na vídeo-instalação. De fato, a breve história da vídeo-instalação, que ganha expressão relevante a partir dos anos 60, é rica e diversa em seus modos de experimentar as relações entre sujeito e ambiente (MONDLOCH, 2010). Sua ênfase nessa equação, ou seja, na condição e nas modalidades sensoriais da experiência, fazem dela uma das preconizadoras da arte contemporânea, na extensão mesmo de sua espacialidade, temporalidade e sensibilidade expandidas.

Na diversidade das possibilidades que se apresentam, e na profusa riqueza das experiências com a imagem em movimento e com a projeção desde a invenção do cinema, nos toca portanto definir algumas fronteiras, delimitar certos parâmetros, fazer opções. Sobretudo o campo expandido em que a imagem em movimento nos coloca impõe definirmos critérios claros, metodologias, conceitos que alinhem os possíveis rumos de uma pesquisa ou processo poético de criação, ou seja, apontando a que tipo específico de obra nos referimos ou desejamos realizar. Isso é sempre e em algum nível uma escolha racional e ponderada, mas que não pode prescindir de sua maior porção intuitiva, poética, subjetiva e algo arbitrária. É nesse encontro imprevisível de águas que a arte costuma se produzir.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. 3a. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2008. 124 p.

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 291 p.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007. 196 p.

______________. Bergsonismo. São Paulo: Ed.34, 1999. 144 p.

MONDLOCH, Kate. Screens: viewing media installation art. Mineapolis: University of Minnesota Press, 2010.

MARTIN, Sylvia. GROSENICK, Uta (org.). Video art. Lisboa: Taschen GmbH, 2006. 96 p.

NANCY, Jean-Luc. What is this world coming to? New York: Fordham University Press, 2014. 144 p.

GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora UNESP/Senac SP, 2007. 467 p.

KANT, Emmanuel. Crítica da faculdade do juízo. 3a. Ed. São Paulo: Forense Universitária, 2012. 382 p.

O´DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 138 p.