Sacrificar pela delicadeza

A cadeira vazia, uma caixa acrílica e o silêncio segredam com o público a iminência de um ritual. Enquanto imagem compondo o espaço da galeria, a cena transmite de pronto a solenidade − física e mental − que espera daqueles que se aproximam. Se a performance como modalidade consagrada do catálogo contemporâneo já não encerra os mesmos traços de ruptura − pelas vias da ação e da linguagem − que a radicalizavam nos anos 60 e 70, em “Corte-me, é preciso!” a artista Vera Junqueira consegue provocar um reencontro intenso entre reflexão e experiência sensível. Seu maior mérito está no modo como convoca e envolve o público, tornando-o cúmplice de um crime sutil, que de resto não poupará ninguém. A ambiguidade desse gesto, generoso e perverso a uma só vez, tem a força de tangenciar a racionalização e conduzir ao questionamento pelas bordas instáveis da pulsão e do instinto, onde habitam os ecos mais rudimentares do sentimento. É de dentro pra fora que a ação incita a experiência, tornando-se escorregadia para o sentido.

Joseph Beuys ressoa aqui em muitos níveis. A bengala, o coiote e a manta de feltro configuram o espaço, circunscrevem a ação. Em torno está a América, objeto da (des)afecção do artista. No interior, na luta cruzada com o desejo, temos o coiote, munido de sua afiada embocadura. Não por acaso a ameaça da ferida na dança por domesticar o coiote − e assim conquistar o coração da América? − se reapresenta indelével na lâmina da tesoura que Vera Junqueira estende para seu público. Mas Vera não veio para deflagrar nenhum duelo. Sua questão é interna, está soterrada pelas aparências − em particular as do feminino − e pede portanto cuidado neste desterrar, seus cabelos como percurso. Para isso, ao ocupar a cadeira que a espera no centro da galeria, a artista se oferece sem defesas nem ironias, disponível e vulnerável, protegida por não mais que poucas regras pré-delimitadas, sem garantias de que venham a ser honradas pelos participantes. É como se Beuys tivesse de enfrentar o coiote de peito nu: conquistar a América, então, seria renunciar à luta para deixar-se desmembrar.

Três incisões podem nos aproximar da essência da proposta. A primeira diz respeito ao feminino numa dimensão mais crua e ampla, certamente livre das investidas que a queiram reduzir a seus aspectos meramente político-ideológicos, tão correntes hoje em dia. A segunda decorre da primeira: do sangue que a lâmina virtualiza na imaginação tem-se algo analógico à dor e ao afeto, o trânsito dos instintos aos sentidos. Já o terceiro trata da presença radical − da artista e do público − num espaço de urgência, configurando a performance e seus registros como elementos rituais, no sentido estético que lhes confere a galeria, ultrapassando tanto as etimologias religiosas do termo como também nossas tendências ao mero psicologismo. Em suma, três instâncias que são uma só na verdade, assim justificadas no gesto que engendra a obra, ou ação: o corte. Sim, a artista se põe à disposição para que o público lhe corte os cabelos, as mechas depositadas na caixa acrílica, como indício ou troféu. Mas não é a beleza ou o poder do feminino que estão em discussão aqui: as intenções da artista apontam para algo que não se deixa fácil nomear, pois confronta diretamente a delicadeza das formas com a brutalidade da natureza que as anima num círculo paradoxal.

O ato único que constitui a obra é deflagrado por uma atitude resoluta e precisa da artista, abrindo espaço para uma partitura de gestos que se repetem sem maiores variações. Ao sublimar o inesperado de seu mise-en-scène − não esqueçamos que a performance está sendo registrada −, Vera Junqueira convida-nos a percorrer os detalhes, os interditos, atentando para aquilo que está ali, mas que não se pode ver nem provar sem um certo estado de atenção. É impossível não supor o risco quando um estranho se aproxima munido de uma lâmina. Se as regras − ou a lei − definem os limites da ação a uma mecha de cabelos, isso nada tem a ver com aquilo que pulsa sob a carne dos sujeitos. O que a artista ritualiza portanto é o seu próprio sacrifício, a sua própria mutilação simbólica. Mas na medida em que as peças desse jogo ritual dialogam com o arranjo exigido pelo registro técnico do evento, ritualiza-se também a desencarnação da própria experiência na forma luminescente − e neste caso anti-estética − da imagem. Tal duplo sacrifício já estava presente em Beuys, que resgatava a estrutura dos ritos de poder ancestrais então no contexto multimidiático da galeria, sobrepondo arte, política e religião bem ao sabor de sua época. Vera se entrega para uma transformação da qual não pode ter o controle, exceto a ritmologia dos gestos e o decorrente registro final da obra. Todo o resto, ou seja, a própria experiência, depende do outro − esse estranho que nos é tão inquietantemente familiar. E o que se revela na ação é que sim, o temido outro antes nos habita.

A performance utiliza os fios dos cabelos para ritualizar, ou fazer pensar, as passagens do feminino, estando o feminino identificado mais com sua natureza bruta e profunda do que com a graça de suas formas. A entrega e o risco são a condição crucial de uma delicadeza extrema, simbolizada pelo fio. O feminino se faz porvir de riscos sempre incalculáveis, o que o coloca na dependência inelutável do mundo e do outro. Ao entregar a tesoura nas mãos de um desconhecido, a artista oferece o destino de si e da obra − seu projeto de transcendência −, para o acaso, acaso que não obstante está animado tanto pelo sentido como pelo instinto, todas as pulsões são aqui suspeitas. Está estabelecida a tensão, acordo precário que corre lento da lâmina aos cabelos que se depositam pouco a pouco no fundo da caixa. A cada aproximação, a cada corte, são as mãos, os corpos permutando o incomunicável, a plenitude de um silêncio tecido por inquietações e pigarros sufocados que faz de todos testemunhas. O que se opera então é um jogo de transparências cujo clímax faz coincidir o sacrifício da aparência com os objetivos de todo ritual: aplainar as diferenças, nivelar os participantes não por sua insignificância cósmica ou social, mas pelo reconhecimento experiencial de um poder que vive em todos por igual. Efeito sublime, pois catártico.

É através do olho que a lâmina comunica com a carne, é como imagem ritualizada que a ação, em cada gesto, em cada desdobramento, comunga com os segredos do público, no individual e no coletivo. É envolvendo o público na densidade cúmplice do ritual que a artista, tal uma xamã, o rosto impávido sem palavra ou intenção, consegue mobilizar as energias em torno de si e através de todos. A ação tem a força de deixar transparecer, ou fazer transmutar, os impulsos primitivos do instinto que espreitam nossas faces dóceis e dispostas ao necessário convívio social. Mais do que isso: provoca refletir em profundidade sobre os caminhos, rudes ou gentis, que nossas feições podem tomar. Com isso cumpre a mesma função catártica do ritual entre os agrupamentos tribais: a dança, a luta ou o sacrifício como modo de realização ou de passagem dos estados do selvagem, permitindo a continuidade mais ou menos harmônica do coletivo. Neste sentido, a ação chega a tocar num dos pontos frágeis do poderoso mundo de espetáculos em que vivemos: as relações nem sempre óbvias, porém indiscutíveis, entre a generalização da violência e a substituição do ritual pelo entretenimento, em outras palavras, a aniquilação do simbólico, dando provas da baixa eficácia das imagens como meios sociais de sublimação.

Mas é bom não perdermos de vista que esse poder aparentemente mágico de reconhecimento só se faz possível através da performance como experiência compartilhada. O ritual revela, sem nomear, aquilo que se esconde sob as aparências, fazendo-o por refração, por insinuação, sem tempo para racionalizar. No entanto, o mesmo ritual como registro não poderá nunca mais ter o efeito que logrou na presença, o que reafirma sua aliança sutil com a arte da performance: ela é necessária como instante e seu registro se torna não mais que resquício ou matéria crítica. Mas se o indício tem ainda o poder de evocar algo do que aconteceu, tal como um ídolo imantado de poder, o mesmo não se pode dizer da crítica, que já não tem nada com a ordem dos rituais humanos, apontando mais para o canibalismo do homem pela linguagem, o texto ou a imagem. Ficam expostos assim os complexos atravessamentos da coletividade mediatizada, da instituição do simbólico na condição de presença à dessubstancialização das essências na condição de imagem. A passagem da experiência vivida para a existência criogênica, que embebe nossas vidas contemporâneas, em parte desarticuladas da potência que se disponibiliza nas autênticas metamorfoses: de dentro pra fora, do fundo para a superfície.

Dispensável dizer que o contrário é o caminho dos espectros, em que nos tornamos meros emuladores de nada. Ao contrário, o que Vera Junqueira nos presentifica em cada corte transmutado, são as próprias possibilidades criativas que nos habitam por natureza e que no entanto se vêem soterradas pelos acúmulos da inconsciência, da cultura e do excesso de razão. Para termos acesso a essa dádiva que é simplesmente nossa, a artista deixa bem claras as estritas condições: a conquista da delicadeza não pede menos que um ato de sacrifício.

 

* Ensaio à propósito da performance, exposição e vídeo-performance “Corte-me, é preciso!”, da Artista Vera Junqueira, com participação de Muriel Paraboni na direção do vídeo, apresentada entre maio e junho de 2015 na galeria de arte da Fundarte, em Montenegro, e na exposição “Urdumes”, apresentada em setembro de 2016 no Espaço Cultural Vila Flores, em porto Alegre.