Sonhos de imersão: uma poética do tempo e do espaço na vídeoinstalação

Uma espécie de vale se descortina na ondulação árida dos montes, a imagem traz ricos nuances de preto, branco e incontáveis tons de cinza, o grão digital − mais conhecido como pixel − cintilando sobre a vegetação rasteira. O céu, parcialmente coberto de nuvens, projeta sombras animadas na paisagem, sugerindo movimento mesmo que o tempo pareça suspenso na fixidez do quadro. O som é direto, rústico, ambiente, quase casual.

Um homem corpulento está de costas, contemplando o desfiladeiro, como que decidindo a direção a tomar. Veste uma túnica e traz uma coroa de rei na cabeça. Ele não se demora e vai em frente, logo acompanhado por outros dois sujeitos, também vestindo túnicas e coroas. E assim seguem os três pela trilha que perfaz o sopé das montanhas. Um depois do outro, devagar e em silêncio, a cada passo mais diminutos na latitude das luzes, dirigindo-se para o fundo e para dentro da própria imagem.

A primeira cena de “O canto dos pássaros” (2008), do cineasta catalão Albert Serra, é uma síntese de sua poética, sutil antecipação do que está por vir. Saberemos mais adiante e sem alardes que esses vulgares andarilhos são ninguém menos que os três reis magos da mitologia cristã. Sua cruzada através dessas planícies desérticas de lugar nenhum, compreendendo quase toda a ação do filme, terá como destino a morada de Maria e José, onde sem saber os aguarda o recém-nascido Jesus.

Nada disso importa muito, porém. Pois os três homens, a despeito do exotismo de suas vestes e coroas, são apenas três homens comuns errando pela paisagem. Antes de tudo, eles são o pretexto ideal para o tipo de experiência almejada por Serra: desmistificar, não o mito, mas a imagem. E isso se dá por uma série de operações paradoxais entre mitologia e atualização.

Afinal, como pensa Deleuze[1], é preciso que algo de potente reverbere desde o fundo das aparências e para isso nada melhor do que uma lenda carregada de imagens, afetos e versões. O nascimento de Jesus já foi contado e continuará sendo recontado através dos tempos. A questão aqui, parece, é simplesmente o modo de recontar, ou inverter, a lógica do mito: ao recusar o imaginário que o constitui, torna-o presente em latência. Todo o imaginário investido no mito surge externo a si mesmo, pois o que Serra põe no lugar é apenas um espelho.

Desta forma, o mito que emerge pode se mostrar extremamente incômodo e mesmo entediante se acaso a nós mesmos costumamos mistificar − e quem pode escapar disso? Se nos vemos como heróis é certo que os três silenciosos magos não nos poderão satisfazer em sua anti-saga. É como se todas as nossas imagens desfilassem, ou fossem convidadas a aquietar ou apenas desaparecer diante da serena câmera de Serra, que nada mais tem a revelar do que o tempo ele mesmo, direto e ao natural, instaurando um espaço repleto de sutilezas.

Todo mito é, afinal, um concentrado de imagens. Quanto mais tempo decorrido, narrado, mais imagens − e afetos − se somam a ele, mais alegórico e mistificado se torna. E o que Albert Serra nos dá aqui, por simples que seja, é essa oportunidade rara de esvaziarmos o mito, desmistificando suas simbologias. Tal operação, por inevitável, retorna a nós mesmos e nos auto-desmistifica pela pura e direta lógica do cinema, do mecanismo das imagens em movimento em nossa percepção[2], o que Serra usa com consciência e evidente conhecimento de causa: evita a montagem linear ou dialética, optando pela circunstância, pelo episódio, dilatando o tempo e investindo na amplitude visual, na beleza e na riqueza dos detalhes da luz, já que a natureza também ela é apresentada sob a nudez do deserto, outro recurso minimalista.

Ou seja, Serra perfaz o caminho oposto àquele pensado por Eisenstein, que Deleuze apelida de “cinema do soco” em função da dinâmica de choque na tecitura da montagem[3], chegando no entanto em destino semelhante ao trilhar a absoluta calmaria das imagens. Cinema episódico, alheio ao tempo, de montagem circular e redundante, em que não há choque, corte ou dialética operando uma multiplicidade de símbolos complexos.

Contra a profusão de imagens de espetáculo da máquina − cinemática – que nos mistifica na cultura contemporânea, Serra opõe o tempo e o próprio esvaziamento da paisagem. O que surge nela, como queria Benjamin à respeito do cinema, é o homem, seu protagonista de honra. No entanto, ao contrário do que desejavam as teoréticas marxistas de que Eisenstein e mesmo Benjamin se nutriam, este homem não surge heróico, revolucionário ou triunfante, mas simplesmente homem, parte do tempo e do espaço, profuso em seu silêncio, entre movimento e repouso, ação e contemplação.

Mas o resultado dessa pretensão posta em prática não é simplesmente a implosão das imagens, a dissolução de toda forma de mistificação por meio de um mito tão célebre quanto afetivamente arraigado no coração da cultura ocidental. Serra não banca o artista rebelde, aquele que joga a bomba e sai correndo, só pra ver o circo incendiar. Pelo contrário, o que seu cinema propõe é todo um modo de ver e de experienciar: ao implodir o mito, propõe − e o que propõe vem nutrir de amplitude o olhar.

Nada de nostalgia, nada de rancor, nada de crítica, intelectualismo ou revisionismo. O mito que Serra propõe é o da simples liberdade − da arte e da vida. Não descarta a riqueza e importância dos grandes arquétipos, mas muito consequentemente os reapresenta próximos, ao alcance da mão.

Imagem, ambiente e tecnologia

A discussão à respeito de Albert Serra é trazida aqui a propósito, ora como espelho ora como constraste, para o debate maior sobre a experiência da imersão nas artes, em particular as artes que lidam com a imagem − em movimento − digital. Em primeiro lugar porque Serra está lidando diretamente com o cinema, experiência imersiva por natureza e definição, mas também porque a ele interessa, a partir da sala escura, discutir a imagem e aquilo que a mistifica, tendo o espetáculo como avatar.

A tecnologia para Serra é um meio e seu uso entra sem dúvida na discussão. Ela não só permite ao cineasta realizar o tipo particular de filme a que se propõe, como também o atravessa, em sua lógica de dispositivo, permeando a estética em níveis vários. É do dispositivo digital que emerge uma estética do imediato, imemorial. É como se neste meio e nesta época só fosse possível − e aceitável − recontar um mito numa apresentação direta e atual. Isso nada tem a ver com o real, é bom frisar, mas com a possibilidade de se estabelecer um nexo de presença entre a obra e o contemplador.

Serra parece seguir à risca a recomendação de Vilém Flüsser na medida em que conhece a caixa preta[4] para subvertê-la e assim dela retirar a originalidade (e a liberdade) de sua poética: se o digital é o dispositivo do instantâneo, da imediaticidade, da imagem-técnica tomada como mundo[5], o que Serra propõe é a desaceleração da máquina, colocando-a contra si mesma, ou melhor, a seu − e nosso − favor. O real aparece como uma modalidade do tempo, já que da imagem técnica nada se pode esperar. E aquilo que exige urgência e imediaticidade produz um movimento contrário, um refluxo ao corpo, ao som ambiente, ao estado vivo da percepção visual, em outras palavras, à própria presença.

Pois bem, não é de outra coisa, a presença, que devemos nos ocupar quando o tema é a imersão pelas imagens nas artes. A definição de Oliver Grau sobre a imersão deve apimentar a discussão:

A imersão é sem dúvida fundamental para qualquer compreensão do desenvolvimento da mídia, apesar de o conceito parecer um pouco opaco e contraditório. Obviamente, não há uma simples relação de ” ou-ou” entre distância crítica e imersão; as relações são multifacetadas, intimamente ligadas, dialéticas, em parte contraditórias, e por certo altamente dependentes da disposição do observador. A imersão pode ser um processo intelectualmente estimulante; no entanto, tanto no presente como no passado, na maioria dos casos a imersão é mentalmente absorvente e antes um processo, uma mudança, uma passagem de um estado mental para outro. É caracterizada pela diminuição da distância crítica em relação ao que é mostrado e pelo crescente envolvimento emocional no que está acontecendo. [6]

A problemática da imersão parece envolver pelo menos três instâncias interligadas: a primeira diz respeito à própria imagem e seu estatuto, como obra, autoria, proposição; a segunda se relaciona com aquilo que se processa no espectador, como alerta Grau, a relação entre distância crítica e envolvimento emocional; e a terceira finalmente abrange tudo o que envolve a imagem (obra, autoria) e o público (crítica, emoção) no atravessamento complexo dos ambientes, dispositivos e modos de apresentação, em suma a experiência como um todo do ponto de vista da convergência das tecnologias no espaço.

No entanto, gostaria de me ater ainda um instante na observação de Grau à respeito da imersão como “processo, uma passagem, uma mudança de um estado mental para outro”[7]. Uma tal definição pressupõe sem dúvida o tempo, no sentido de um transcurso mesmo, para que a passagem de estados possa de fato ocorrer. A relação desta temporalidade imersiva com o conceito de duração em Bersgon[8] se mostra bastante conveniente, até porque se assemelham e se complementam mesmo em seus desdobramentos: para Bergson, a duração é uma espécie de continuidade que atravessa todos os fenômenos, uma unidade ou concomitância, um tecido atemporal. Se por um lado a própria duração não é divisível, nela cabem todas as divisões possíveis do tempo cronológico relativo, todas as temporalidades e graus parciais de intensidade. É a isso que se refere Grau quando fala na imersão como processo, passagem ou mudança de estados. Não há uma imersão, mas incontáveis modos da experiência imersiva.

Os graus de imersão, portanto, dependem de uma combinação de fatores, dados pelas variáveis da obra, do ambiente, da tecnologia e do público. A divisão, contudo, é mera e precariamente instrumental, na medida em que o efeito imersivo de uma obra se dá num todo como experiência, ou seja, a obra está em diálogo ou em construção com o ambiente e ambos, obra e ambiente, estão ligados (e são afetados) entre si pela tecnologia. Finalmente, o público, contemplador, espectador, interator ou como venha a ser chamado de caso para caso, estabelecerá a sua relação − em parte individual e em parte coletiva − com a obra e seu entorno, despojando-se em níveis mais ou menos intensos de imersão, na medida mesmo de suas próprias disposições críticas, intelectuais e cognitivas.

Nos dois extremos pensáveis, à título de exemplificação, podemos situar a galeria de arte nos moldes tradicionais, o “cubo branco” como o classificou Brian O’Doherty, na intensidade mínima de imersão, exigindo uma relação mais crítica e intelectual, social mesmo, com as obras; na outra ponta da imersão, em sua (suposta) máxima intensidade, a lista pode ser tanto mais extensa: do cinema à instalação (ambiental, vídeográfica, sonora, computacional, interativa), ao vídeo, às projeções em modos variados e ao mapping, à experiência full-dome.

Deste modo, e no contexto de uma pesquisa que se propõe a elaboração de uma vídeo-instalação, dois aspectos parecem importantes na experiência imersiva: o primeiro diz respeito a que tipo de demanda, necessidade ou objetivo, nos sujeitos, responde a imersão; o segundo se refere aos graus e intensidades da experiência e suas respectivas aproximações com as noções de arte e espetáculo.

 

Extremos da imersão: origens e sentidos

Toda experiência estética é em algum nível imersiva. Não é exatamente o que afirma Oliver Grau, mas tal conclusão está bem insinuada em suas proposições. Afinal, ele traça sem restrições uma linha de continuidade entre a ilusão e a imersão, em que a primeira circunscreve a arte representativa do passado e a última a própria experiência com as imagens de hoje. Entre esses dois momentos o autor pontua uma passagem, que corresponde ao período moderno, situando os panoramas do século XIX como experiências decisivas no sentido de uma transição de ambientes, do moderno ao contemporâneo.

Grau traz um detalhado estudo sobre as ruínas da “Villa dei Misteri”, em Pompéia, cujos murais apresentam um misto de traços miméticos e ilusionistas. Em primeiro lugar, o autor chama a atenção para o efeito almejado − e logrado − pelos afrescos: “através do dispositivo aparente de alargar a superfície da parede para além de um único plano, o recinto surge maior do que seu tamanho real e conduz o olhar do visitante para a pintura, borrando as distinções entre espaço real e espaço imagético[9].” Eis então uma manifestação remota da imersão no modo como ela vai ressurgir nos panoramas do séculos XIX e seguir através da contemporaneidade.

Os ambientes, ou salas, a que se refere Grau à respeito de Pompéia não devem em nada, por exemplo, às cavernas que abrigavam as pinturas rupestres da antiguidade. Lá (na antiguidade) também já se ensaiava a representação do movimento, especialmente dos animais no contexto dos rituais de caça, em representações não apenas miméticas. Ao que parece, o conceito de ilusionismo não tem época, pois que pertence antes a um impulso do ser, o que fica sugerido na conclusão de Grau à respeito do condicionamento do espaço: “tal disposição cria uma ilusão de estar na imagem, dentro do espaço da imagem e de seus eventos ilusórios[10]“.

O que se está aludindo aqui, queiramos ou não, é a um impulso natural dos seres, através dos tempos, pela experiência “na imagem, na ilusão”. Ainda no contexto da “Villa dei Misteri”, a definição de ilusão não inclui narração ou dramaturgia, embora as pinturas tragam tais elementos em sua face mimético-ilustrativa: “Os eventos descritos (nas pinturas) não são mostrados em sucessão mas como unidade espacial e temporal[11]“. Ou seja, o efeito ilusionista está relacionado com a técnica, com os arranjos do espaço, com os modos de apresentação em diálogo com a representação figural, que sozinha não pode produzir uma ambiência de realidade simulada, em outras palavras, de imersão. Uma nova visita ao exemplo-modelo de Grau vai esclarecer de vez a questão:

Como no Grande Afresco da ´Villa dei Misteri´, o princípio da unidade de tempo e lugar também é usado aqui. Além disso, o observador confronta uma imagem simultânea que o envolve panoramicamente e o transporta para outro espaço. Para aumentar o efeito da ilusão e manter a continuidade, a luz entra na câmara a partir de uma abertura na parede, imediatamente abaixo do teto, que é pintado para representar rochas pendendo de uma gruta. Esta construção é semelhante ao método de iluminação utilizado mais tarde em panoramas.[12]

Várias especulações pertinentes são possíveis a partir dessas observações. Em primeiro lugar, a noção de que a imagem pode ser decomposta em pelo menos duas dimensões elementares: a primeira mimética, figural, portanto visível, material e palpável, dirigida ao escrutínio intelectual; a segunda imaterial, dada por arranjos espaço-temporais que se relacionam diretamente com os estados psicológicos e afetivos do ser. E com isso voltamos à definição de Grau sobre imersão, que sugere uma diminuição do juízo crítico em detrimento de um maior envolvimento emocional.

O segundo ponto diz respeito ao impulso mesmo, origem ou demanda, que perfaz esta segunda dimensão da imagem. Tanto no caso de Pompéia como no outro exemplo das pinturas rupestres, trata-se da representação das figuras em contextos religiosos-rituais. Ou seja, o desenho e a pintura, enfim a representação imitativa do mundo visível, estava ligada ao ritual, que é da ordem da vivência, da mediação entre mundos, matéria e subjetivação. Em ambos os casos, esperava-se que as figuras comungassem com as transformações desejadas ou em precipitação entre o mundo externo e o interno dos sujeitos. A imagem no ritual pertence à ordem da magia, símbolo de acesso, canal de comunicação de mão dupla, conforme Grau outra vez: “A imagem é uma porta de entrada, que permite que os deuses entrem no espaço do real, e, no outro sentido, transporta seus assistentes mortais em cena[13].”

Diante disso, não é difícil identificarmos o período clássico da arte ocidental − em oposição, por exemplo, ao próprio Renascimento, com suas íntimas ligações com a expansão do cristianismo − como aquele em que a razão se impõe à emoção, para seguirmos balisando com a imersão. A galeria de arte forjada nesse contexto será portanto um espaço de baixa imersão, na medida em que as obras são dispostas sob arranjos não-ritualizados, não imersivos. Estamos no alto império da razão e da linguagem, os espaços da arte são antes ambientes claros e arejados, lugares de encontro, de convívio, de prática social, as obras servindo como mediadoras de narrativas, de dramaturgias, ambiente profícuo para que a estética se apresente como disciplina de retorno ao que é essencial, tentando religar a arte ao mundo, aos seres.

Mas a questão, ao que parece, é que do século XIX pra cá a demanda imersiva ressurge com matizes variados e insuspeitos. O exemplo mais claro são os panoramas, que lograram enorme sucesso de público na época, e que nada mais eram do que o resgate − ou ressurgimento − de afrescos murais tais como os de Pompéia, apenas com o notável aperfeiçoamento técnico e estético à disposição na modernidade. Da mesma forma, e algumas décadas adiante, a própria galeria de arte vai se encontrar − ou ressurgir − num contexto sacralizado, por mais que não admitisse isso. É o cubo branco denunciado por Brian O´Doherty, templo-alvo de desejos e ataques por parte das vanguardas modernistas.

Ou seja, a demanda “imersiva” flerta pelas bordas com as manifestações estéticas do moderno ao contamporâneo. Sua relação com a razão tem algo de dialética, na medida em que o debate artístico formal tende a garantir-se certa reserva de domínio sobre seus impulsos e efeitos imprevisíveis. No entanto, as dificuldades desse diálogo, e o fato inconteste da supremacia da mediação racionalizante sobre a experiência direta do sentimento, se traduzem com evidência nas distorções sofridas pelos processos e manifestações estéticas dos últimos tempos.

Estamos falando, obviamente, do espetáculo de que os panoramas, e logo mais o cinema, serão os expoentes. Sob esta perspectiva, é possível pensar o ilusionismo, como técnica de condicionamento do ambiente, como elemento chave no invólucro que estetiza o espetáculo. Quer dizer, se o espetáculo se utiliza largamente das técnicas imitativas, representacionais, dramatúrgicas e narrativas para dar semelhança − ou melhor, verossimilhança, na expressão de Aristóteles[14] − entre figura e realidade, é o ilusionismo como disposição e técnica que tem o poder de lhe mistificar, perfazendo sua atmosfera e ativando-o como realidade de segunda ordem, ilusória, virtualizada, experienciável em imersão.

Mas não é o espetáculo que nos interessa aqui, como tampouco é objetivo fazer crer que o debate estético, em qualquer nível que seja, possa ser reduzido à dicotomia razão versus emoção. Interessa pensar o espetáculo como categoria-limítrofe, espécie de apropriação ou desvio, que se serve da arte, suas técnicas, processos, imagens, linguagens e suportes de expressão, no entanto sem constituir arte de fato e muito possivelmente sem pretendê-lo. Nessa condição, o que permanece em aberto no espetáculo é a estetização do próprio ilusionismo pelo ilusionismo, como dimensão do entretenimento puro e simples, deixando assim sua demanda latente sempre em aberto. Quer dizer, se o impulso ritual que, já discutimos, perfaz a origem do ilusionismo e da imersão, ligando o mundo da figuração (racional, linguístico) com o mundo da subjetividade (ritual, emocional) é o mesmo que investe no espetáculo, fica então às claras a latência − não realizada, frustrada − dessa damanda. É como se o espetáculo prometesse, sem cumprir.

É claro que é possível objetar que tampouco a arte seja capaz de cumprir com tais demandas, de conectar as dimensões oníricas e imagísticas do ser ao mundo concreto, material e visível. Nem toda arte em sua história ocidental se pretendeu a isso, como não se pode senão arbitrariamente ditar que a demanda primitiva e ritualística possa constituir a autêntica origem e demanda da arte. A intenção aqui, longe de buscar identificar autenticidades ou inautenticidades segundo qualquer critério estético, por embasado que seja, é localizar esses aspectos mais ou menos semelhantes, mais ou menos comuns em diversos pontos da história das manifestações artísticas, os quais de algum modo podem nos dar base para constituir um parâmetro sensível, poético mesmo, sobre o qual assentar esta pesquisa.

Intensidades de tempo, latitudes de presença

Voltemos, então, a Albert Serra. Ou mais precisamente ao que ele provoca no coração do ambiente imersivo − a sala escura de cinema, atualização do arquétipo da caverna, dos afrescos murais, descendente do teatro grego, todos em suas próprias medidas rituais. Pois o cinema é antes um evento, ritual urbano, moderno nos moldes da vida estetizada dos tempos do espetáculo: sair de casa com tempo, comprar ingressos, a imersão no filme, o lanche partilhado depois da sessão, onde então as impressões colhidas no recato individual da projeção são elaboradas por meio da linguagem, elo do convívio social.

Tal descrição por si só é suficiente para evidenciar aquilo que, conforme dito, falta e sempre faltará ao espetáculo − e que ele não pretende nem pode proporcionar: a cultura do cinema de massas, por ritualizada que seja, perpassa apenas a própria cultura, remete a si mesma. O espetáculo seduz, o inominável é seu chamariz, mas o desfecho é a frustração que se encerra no ciclo de consumo da própria cultura. Os códigos, os símbolos que autenticam esse movimento circular são todos mitos do próprio cinema, do consumo, da própria cultura, que no máximo cumprem com a função de manterem um ao outro, ambos enquanto objetivos de consumo, sua finalidade última.

Longe disso, o que Serra coloca em cena é a horizontalidade entre a vida − cotidiana − e os mitos, tornando tão aparentes quanto próximos os seus símbolos, a ponto de nos surgirem tangíveis, palpáveis. É essa operação que rompe com o ciclo vicioso do espetáculo, pois não dá combustível para a manutenção da mistificação de seus elementos narrados. Pelo contrário, é como se a imagem carregada do mito passasse por um processo de depuração, a dilatação do tempo e a amplitude do espaço operando como continentes − no sentido psicanalítico, cognitivo e afetivo mesmo do tempo − para que apenas o essencial permaneça. Serra não soma mais imagens e versões ao mito, ele as subtrai e ao subtrair deixa visível aquilo que também é essencial no plano do sujeito, em sua existência presente, real se se pode dizer assim.

O efeito, arrisco dizer, será outro quando o espectador sair da sala escura. Ele não poderá experienciar, de volta à cultura, algo diferente do que a pouco experienciou com o filme: um deslocamento radical entre espaço e tempo, a ponto de fazê-los convergir numa indizível esquina de desaparição, devolvendo à cultura a sua aparência farsesca. Quero dizer com isso que Serra usa a imersão não do mesmo modo, mas sem dúvida em sentido semelhante, ao de Godard: ambos devolvem à sala escura o seu sentido de caverna ritual, lugar da invenção viva das imagens, de realização ativa entre os símbolos e as camadas visíveis e invisíveis da realidade. Cada qual a seu modo, é claro, Godard pelo excesso, Serra pela síntese, pela absoluta economia de meios. E no entanto ambos não se afastam nunca da metalinguagem, e da metalinguagem que a todo instante perfaz os aparatos, os dispositivos, as técnicas e a tecnologia, que é um dos modos contemporâneos de manifestação da consciência crítica e inventiva, como muito bem expressa Flüsser nesta passagem:

Aparelho é brinquedo e não instrumento no sentido tradicional. E o homem que o manipula não é trabalhador,mas jogador: não mais homo faber, mas homo ludens. E tal homem não brinca com o seu brinquedo,mas contra ele. Procura esgotar-lhe o programa. Por assim dizer: penetra o aparelho a fim de descobrir-lhe as manhas. De maneira que “o funcionário” não se encontra cercado de instrumentos (como o artesão pré-industrial), nem está submisso à máquina (como o proletário industrial), mas encontra-se no interior do aparelho. Trata-se de função nova, na qual o homem não é constante nem variável, mas está indelevelmente amalgamado ao aparelho. Em toda função aparelhística, funcionário e aparelho se confundem.[15]

De mais a mais, o que interessa para o contexto desta pesquisa são justamente as escolhas de Serra, a apropriação minimalista do tempo, a cuidadosa abordagem do espaço fotográfico como espectro, latitude através da qual se deslindam incontáveis e sutis graus de intensidades, de nuances, de variações para um mesmo tema. Quanto ao tema, sua convergência e unidade para um mesmo ponto, em que a paisagem varia mas segue sendo lugar nenhum, em que os personagens se movimentam e seus estados se alternam mas seguem sendo absolutamente ninguém, em que tudo chega a um fim que é nada mais que outra continuidade, um reinício simplesmente, tal caleidoscopia e reiteração temática parecem ser aquilo que, em termos de montagem, tempo e ritmo, proporciona a experiência da presença.

E o que é essa presença afinal? Para responder, nada melhor do que outra questão: e a presença não será o quê (os deuses, conforme os antigos) autoriza o caçador a seguir com seus deveres, ou aquilo que ressurge na imensidão da paisagem, uma tempestade por exemplo, como expressão de impotência e apequenamento que no entanto alivia e redime, e que os gregos chamavam de purificação ou catarse? A presença não será afinal esse efeito súbito, às vezes de efeito fugaz, um lampejo de lucidez que se eleva sobre todas as faculdades inteligíveis, e que nos coloca de corpo e consciência alertas diante do atravessamento visível e não obstante incomunicável da experiência? Não será o que Benjamin chegou a chamar de aura, essa figura paradoxal, presentificação de algo distante, por mais próximo que esteja[16]?

Seja como for, a questão do efeito ou experiência estética no ambiente contemporâneo não passa ao largo da evidência das tecnologias, suportes-fontes das nossas imagens. A tecnologia é parte indissociável da obra, é estética em si mesma, pois que contém a própria inteligência ou programa que cabe ao artista, mas também ao público, desmembrar. A experiência estética, nesse sentido, não será outra coisa além do trafegar rente aos dispositivos, entre as imagens que produz e a metalinguagem que lhe desvela as inteligências, as lógicas, os jogos, no interior de uma caverna que não esconde suas paredes nem seu tempo, mas que emprega o meio como ponte para a conexão com a essência.

Em suma, conhecer o impulso e não perdê-lo de vista, perfazer o entorno à imagem e semelhança do real (sic) sem promover afogamento ou claustrofobia; deixar janelas, por pequenas que sejam, entre-abertas na imersão, arejando a caixa-preta e deixando entrever os fios que ligam as partes, os fragmentos de emoções, pensamentos, conceitos, afetos e imagens que se movimentam nas correntes diversas da obra instalada, alternando temporalidades e modalidades de experiência. Permitir ao espaço ser espaço, campo aberto que ora e outra se vê transposto por idéias e imagens, permitir ao tempo ser tempo sem destituí-lo de sua unidade − a duração − mas igualmente sem confiná-lo na rigidez linear da cronologia. Fragmento e síntese, repetição e círculo-movimento, narrativa sempre suspensa por reticências, enunciação aberta para conclusões, tal a imagem e semelhança do pensamento, tal como formidavelmente nos descreve Robert Smithson, artista da paisagem por excelência:

A mente e a terra encontram-se em um processo constante de erosão: rios mentais derrubam encostas abstratas, ondas cerebrais desgastam rochedos de pensamento, idéias se decompõe em pedras de desconhecimento, e cristalizações conceituais desmoronam em resíduos arenosos de razão. [17]

A paisagem diluída como experiência numa vídeo-instalação, incorporando elementos técnicos de imitação, ilusionismo, sensorialidade, imersão e narrativa, não poderia ter outra feição que não a da própria mente. A imagem que se movimenta através do espaço não é outra coisa que não próprio pensamento em aberto, descontínuo, deixando espaço para os fluxos vivos do contemplador, já não mais contemplador e sim agente, agente entre contemplação e narrativa na elaboração de um pensar sempre  coletivo, sempre em fluxo, sempre em movimento.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. 3a. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gubenkian, 2008. 124 p.

BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 257 p.

BERGSON, Henri. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 291 p.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005. 340 p.

____________. Bergsonismo. São Paulo: Ed.34, 1999. 144 p.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2ª Ed., São Paulo: Ed.34, 2010. 262 p.

SMITHSON, Robert. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília (org). Escritos de artistas: anos 60/70. 2ª Ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. 461 p.

FLÜSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985. 92 p.

GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora UNESP/Senac SP, 2007. 467 p.

O´DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 138 p.

[1] Em “A imagem-tempo” (p. 192) Deleuze estabelece paralelos entre o cinema e o pensamento, afirmando que o pensar de fato acontece do fundo para a superfície, como erupção de uma potência sobre as idéias já estabelecidas.

[2] Deleuze, p. 193-195.

[3] Idem, p. 192.

[4] Flüsser, p. 13.

[5] Flüsser se refere às imagens de segunda ordem, cuja natureza codificada se oculta sob a aparência – simulada – de mundo. Ver Flüsser p. 10-12.

[6] Grau, p. 13.

[7] Grau, p. 13.

[8] Deleuze, p. 34.

[9] Grau, p. 25.

[10] Idem, p. 25.

[11] Grau, p. 27.

[12] Idem, p. 31.

[13] Ibidem, p. 29.

[14] Aristóteles, p. 54.

[15] Flüsser, p. 15.

[16] Benjamin, p. 170.

[17] Smithson, p.182.